Título: Em muitas escolas, aulas são só ficção
Autor: Tabak, Flávio; Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 15/03/2009, O País, p. 14
EDUCAÇÃO AO RELENTO
Ano letivo ainda não começou em colégios de norte a sul do país devido a falta de professores e péssima infraestrutura.
RIO e RECIFE. Março deveria ser o segundo mês de aulas nas escolas públicas do país, com alunos, professores, inspetores e auxiliares em plena atividade. Mas, no lugar de turmas estudando para as primeiras provas, O GLOBO encontrou, em oito estados brasileiros, salas de aula vazias por falta de professores ou problemas de infraestrutura nas escolas. Em estados como Rio, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Piauí, Ceará, Alagoas e Amazonas, há alunos sem aula por causa de goteiras, inundações, ratos, cupim, carteiras quebradas e paredes destruídas.
O distrito de Jussaral, a 60 quilômetros do município de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, tem apenas uma escola municipal para a população de seis mil pessoas. Mas não há alunos em sala de aula. Revoltados com as péssimas condições de ensino, os pais decidiram boicotar a escola.
Entre a aprendizagem e a vida dos seus filhos, os responsáveis preferiram ficar com a segunda opção. Exigem educação de qualidade e segurança, mas o que encontraram na escola Marquês de Recife, no início deste ano, não é compatível nem com um nem com outro: as salas estão deterioradas, telhados ruíram, e os cupins avançam pela estrutura. Há infiltrações nos corredores e salas. Metade do muro que cerca a escola desabou, mas a prefeitura ainda não vê risco. Na parte interna, rachaduras são visíveis. Sem espaço, os livros se acumulam pelo chão e até mesmo em sanitários.
Dados do Censo da Educação Básica 2007 confirmam que a precariedade está espalhada pelo Brasil. Das 166.240 escolas públicas de educação básica, 71% não têm biblioteca; 77% estão sem quadra de esportes; 13% não contam com água filtrada para os alunos; e 8% sequer têm esgoto.
Na última quarta-feira, o pastor José Sabino Segundo, pais e alunos procuraram o Conselho Tutelar e o Ministério Público para denunciar a situação caótica em Cabo de Santo Agostinho. O presidente do Conselho Escolar, Rinaldo Monte da Silva, denuncia a exclusão social e o descaso público impostos à comunidade. Na quinta-feira, alunos e mães voltaram à escola Marquês de Recife para protestar. Com cartazes feitos de cartolina, reclamavam: "Prefeito, isso é uma vergonha".
- O pai tem direito de fazer greve. Mas minha postura como educadora é diferente. Fico preocupada quando vejo que tem menino que não sabe ler ainda - diz a professora Maria Auxiliadora da Silva.
Paredes que dão choque
Em 2008, já em crise, a Marquês de Recife, tinha 783 alunos, segundo o diretor Júlio Farias da Silva Braga. Em 2009, apenas 678 decidiram se matricular. Das 16 salas, só oito foram liberadas para funcionar este ano, e os pais temem que os telhados desabem. Eles mostraram linhas de madeira corroídas por cupins. A Secretaria de Educação informou que foram reforçadas para evitar desabamento do telhado. Mas verifica-se um risco ainda maior: as madeiras podres ganharam sobrepeso com suportes.
- A Igreja Renascer caiu em São Paulo sem ninguém esperar, depois de reforma. Aqui não houve conserto, e ninguém quer ver seu filho numa tragédia - reclama Taciana Lima, de 30 anos, mãe das gêmeas Tainara e Tamara, de 7.
Em 2008, a escola foi inundada, o muro desabou, e a parede dava choques. Abastecimento de água apenas de dois em dois dias. Dez computadores estão há um ano armazenados em caixas e não podem funcionar. Livros estão amontoados, expostos à umidade do chão, porque a biblioteca foi interditada.
No Rio, a infraestrutura precária se repete, com o agravante da falta de professores. O Ciep municipalizado 045, em Porto do Rosa, na cidade de São Gonçalo, tem 500 alunos da 1ª à 4ª série do ensino fundamental. Da proposta que surgiu no governo Brizola para garantir ensino público integral de qualidade, só restou o esqueleto. Suja, a piscina tem apenas lodo. Não há porteiro para controlar a entrada, e as cercas estão quebradas. Como falta água frequentemente, alunos reclamam de sede durante as aulas e dos banheiros insalubres. O transporte para os estudantes ainda é um sonho distante dos moradores.
- Inscrevi meu filho de 7 anos para o ônibus escolar que a prefeitura ofereceu, mas não me deram a carteirinha. Para deixá-lo com segurança no Ciep, tenho que andar uma hora para ir e voltar. Ele já perdeu aulas por causa da falta de água. O governo tem que ter mais responsabilidade - reclama a doméstica desempregada Maria Salvadora Carreiro, que sobrevive catando latas e perde quase metade de seu dia de trabalho levando, a pé, o filho à escola.
Números do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) confirmam que a dificuldade da mãe é comum. Em 2006, 1,8 milhão (9,2%) de alunos declararam faltar a aulas por ausência de transporte, falta de professor ou greve.
A Secretaria de Educação de São Gonçalo informou que recebeu o Ciep do estado em péssimas condições, e que começou a recuperar as instalações. Sobre a piscina, o município diz que está desativada e faz parte do programa de controle de zoonoses. Larvas foram espalhadas para impedir o surgimento de mosquitos. Segundo a secretaria, há rotas de transporte escolar em funcionamento.
Caderno novo, mas em branco
Não muito longe do Ciep, a escola estadual Trasilbo Filgueiras, no bairro de Jardim Catarina, também em São Gonçalo, ainda não começou o ano letivo para os alunos do ensino fundamental. Além de goteiras que aparecem em dias de chuva, o problema maior é a falta de professores.
Como qualquer menina de 7 anos, Taynah se arrumou toda, no dia 9 de fevereiro, para começar a 2ª série. Ao chegar à Trasilbo Filgueiras, recebeu a notícia de que não teria aulas porque não havia professor. Desde então, está em casa.
Mãe da menina, a dona de casa Márcia Cristina de Oliveira tinha juntado economias para, com a ajuda do pai, que trabalha numa papelaria, comprar o material: uma mochila e quatro cadernos, cuidadosamente encapados para durar o máximo. Todos estão em branco. A mãe tenta, num bloco de rascunho, criar exercícios para a filha não perder o ritmo, já que não é a primeira vez que isso ocorre.
- Em 2007, minha filha só começou o ano letivo em junho também por causa da falta de professores. Reclamei várias vezes, mas eles não têm previsão. Todos os dias ela me pergunta se terá aulas. À noite, quer que eu ajuste o alarme para acordar cedo, mas não temos informação - diz, indignada, Márcia.
A Secretaria estadual de Educação admitiu que faltam três professores no ensino fundamental da escola e informou que dois novos profissionais já estarão lá amanhã. Um terceiro "deve ser alocado na próxima semana", afirmou a assessoria da secretaria.
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