Título: Ele preferiu a estratégia a dar amor ao filho
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 15/03/2009, Rio, p. 17

Padrasto brasileiro diz que pai americano deixou de visitar o filho apenas para manter acusação de sequestro

O americano David Goldman acabara de sair do condomínio onde estivera pouco antes com seu filho, Sean, pela segunda vez naquele dia, quando o advogado João Paulo Lins e Silva, padrasto do menino, recebeu a equipe do GLOBO para a sua primeira entrevista sobre o caso. Apesar do dissabor causado pela visita (na verdade, pai e filho se viram fora do apartamento, na área comum do condomínio), João Paulo - que luta para manter Sean no Brasil - parecia calmo e ligeiramente satisfeito ao saber que, naquele momento, circulava na internet um manifesto de amigos em apoio à sua causa. Na sala, transformada em escritório, objetos de decoração disputam espaço com papéis variados, desde peças do processo a desenhos infantis. A mesa de jantar está tomada por quatro notebooks. Alguns móveis estão fora do lugar. Pelas primeiras respostas, percebe-se também que a vida daquela família está fora do lugar. Da porta da sala para dentro, os moradores tentam seguir o curso normal da vida. A TV está ligada diante de uma poltrona na antessala. Sean, no quarto, joga videogame. Mas é difícil ignorar toda a confusão que o caso está causando, a ponto de provocar um embate diplomático com os Estados Unidos. Desde a morte da mulher, a empresária Bruna Bianchi, mãe de Sean, há seis meses, João Paulo garante que não tem tido paz nem mesmo para guardar o luto. Ele explica que, após um longo período de silêncio, resolveu falar sobre o caso para "não virar saco de pancada" e evitar a idéia de que "quem cala consente". Ele, que ganhou a guarda provisória do menor na Justiça estadual, diz que se sente alvo de uma campanha difamatória internacional, na qual aparece como "sequestrador" de um menino de 9 anos que considera o próprio filho. Durante a entrevista, João Paulo se esforça para evitar o tom emocional. Não quer usar, segundo ele, as mesmas armas do americano. No fim, porém, capitula. Confrontado com uma foto de Sean, em que o garoto carrega as duas alianças do casamento de João Paulo e Bruna presas a uma armação de madeira em forma de oito, o advogado explica que o "oito", deitado, representa o infinito. "Era o nosso símbolo, o amor infinito". Em seguida, chora.

Por que falar só agora, depois que a disputa pela guarda do menino ganhou contornos de crise internacional?

JOÃO PAULO LINS E SILVA: A situação chegou a um estado tal, de exposição, principalmente da imagem de Sean, de uma forma tão rude, tão grossa, de assuntos que são tão íntimos e pessoais de uma família que passou por momentos tão dolorosos, que resolvi falar. Há seis meses, quando nasceu minha filha - um momento de maior alegria, como todo mundo que espera o nascimento do filho - aconteceu o pior (a perda da mulher após o parto). A partir daí, não tivemos direito a viver o luto. Logo após o falecimento, começamos a ser alvo da exploração na mídia, inicialmente nos Estados Unidos. Lá, se usou muito o "free speech". Aqui, a gente teve a proteção do segredo da Justiça, que serve para resguardar a imagem da criança e da família, mas perdeu-se o controle. Não teve jeito. O que fazer quando se perde o controle? Virar saco de pancada? Aceitar a teoria do quem cala consente? Será que, calado, estou concordando?

Como o senhor vê a reação da opinião pública?

JOÃO PAULO: Minha sensação foi de que o pai americano começou a explorar os acontecimentos, exibindo a sua versão, em grande parte mentirosa, para a torcida americana. Isso começou, talvez, de uma forma estratégica criada por ele e sua equipe, e acabou contaminando também a opinião pública brasileira. O objetivo era transformar-nos nos grandes vilões da história. Claro que a opinião pública tem o seu peso. É absurdo como duas famílias (a Bianchi e a Lins e Silva) que, durante anos, só deram amor, carinho e dedicação a uma criança, agora viraram sequestradores internacionais, como tentam vender. Isso é um absurdo.

O senhor se refere à versão mentirosa. Poderia detalhar mais o que considera mentira na versão do americano?

JOÃO PAULO: Detalhes que contados lá não condizem com a realidade. Temos todos os documentos comprovando. A versão dele só mostra as fotos com o Sean. Não assisti parte dos programas, mas sei que uma das coisas alegadas é que ele teria vindo ao Brasil e fora impedido (de ver o filho). Mentira. Nunca houve impedimento de coisa alguma. Nunca se buscou contato com a família neste sentido. Nunca houve iniciativa judicial para isso. Zero. Nenhuma ligação ou petição ao juiz pedindo a visita. Ele exibe o passaporte dizendo que veio sete vezes. Mas as pessoas contam que ele esteve somente no Tribunal da Justiça para fazer lobby.

Ele se refere à família brasileira como poderosa e capaz de influenciar a Justiça?

JOÃO PAULO: Outro absurdo. Nada aconteceu de forma diferente. E veja o texto de uma petição do americano, documento oficial dentro do processo (ele exibe e lê): "Se até aqui não houve visitação, isso se dá porque, muito embora não tenha sido negado pela mãe da criança essa possibilidade, seus respectivos advogados sempre condicionaram o reencontro pai e filho à assinatura pelo requerido David de acordo de visitação que seria a aceitação da jurisdição brasileira sobre as questões relativas à guarda do menor e que esse acordo o pai do menor jamais poderia subscrever, visto que resultaria no impedimento à continuidade de ação de busca e apreensão, cujos autos se encontram remetidos ao Supremo Tribunal Federal". O que significa isso? Está claro. Ele optou por não visitar porque existe um processo. E se ele visitasse, seria admissão. Esse processo no Supremo é a alegação de sequestro, iniciativa dele. Agora, está dito textualmente que foi opção dele, que não poderia visitar, porque se visitasse deixaria de ser sequestro. É coisa absurda. Se processo demorasse 20 anos, ele ficaria 20 anos esperando porque o advogado disse isso para ele. Que amor é esse?

Como é, hoje, a rotina da família?

JOÃO PAULO: Tentei manter a rotina do Sean a mais normal possível para o benefício pessoal dele. Ele fica grande parte do tempo na escola e tem atividades extras. Ele não está aqui, no apartamento, nesse tempo da escola. Isso (a disputa) é discussão de adultos. Participo muito do dia a dia na escola e reunião de pais. Pelo que soube na mais recente, não houve nenhum comentário entre os colegas sobre o caso. Nada. Todos os deveres sou eu que faço. Desde a época em que Bruna estava viva. Ele me pede para fazer.

Ele está consciente do que está acontecendo?

JOÃO PAULO: Ele tem grande consciência. Está muito aflito, angustiado. Temos um relacionamento de muito carinho e segurança. Eu o amo plenamente. A gente conversa. Tendo passar o que está acontecendo, sem esconder. Nos últimos seis meses, tentei manter de alguma forma uma rotina. No condomínio, os amigos dele apareceram mais, preocupados também. Sempre que posso, faço com ele atividade externa. Vida de pai. A vida continua. Não dá para suprir a dor. O coração partiu. É muito duro. Posso chorar de emoção, mas escondido. Para ele, digo que temos de continuar, não podemos cair porque há uma vida bacana pela frente. Tem a irmã dele (Chiara, de 6 meses). Ele vai ser um exemplo. Teve a oportunidade de estar com a mulher mais maravilhosa do mundo. Ele pode contar isso à irmã.

Como reagiu ao envolvimento de Hillary Clinton?

JOÃO PAULO: Ela deveria se preocupar mais com o avião da Gol e o Legacy, trazer os pilotos para cá, do que se preocupar com a família dos outros. Precisa se preocupar com a dela, que já passou por uns problemas e não sei se resolveu. Ela não tem nada com isso e fica se metendo. Isso não é um problema da Hillary, do jornal. É um problema de família. Precisa ser resolvido aqui. Ele (o pai natural) expôs o Sean na internet de forma inconsequente. É um absurdo. Achar que ele não sabe o que acontece. Ele sabe.

Em que circunstâncias ocorreram os encontros do Sean com David esta semana? Ele ligou antes?

JOÃO PAULO: Essa visita acontece devido a acordo prévio, feito em audiência em Brasília. Visita oferecida por mim, inclusive, depois de muitos obstáculos criados por ele, que não queria vir para cá. Tentei dar todas as garantias para que ele pudesse visitar o Sean e estar aqui. Lógico, visando ao interesse do Sean também. Se ele se sentisse desconfortável e quisesse subir (ao apartamento durante a visita), poderia. Da primeira visita para cá, ele nunca ligou ou mandou e-mail para perguntar se ele estava bem.

O Sean consegue entender o inglês do pai biológico?

JOÃO PAULO: Entende mais e fala menos. Não posso levá-lo num filme inglês. Ele sai sem entender. Pede para ver o filme dublado. "How are you? Very good". Isso é o que fala.

Como é a relação do menino com a irmã?

JOÃO PAULO: Incrível. Ele tem adoração pela irmã. Pega no colo e traz. Chiara vê fotos do Sean na parede do quarto dele e fica querendo pegar. Ele desce com ela. Tenta pegar no colo e dar banho. Logo depois que Bruna faleceu, ficou preocupado. Veio perguntar se, se casasse, quem iria levá-lo na igreja. "Não tenho mais mãe". Respondi que a irmã iria levá-lo. Ele abriu um sorriso e se sentiu realizado. Mais recentemente, ele fez um cartão, "Feliz Dia Internacional da Mulher", e escreveu uma poesia, que copiou da escola. Para quem ele deu o cartão? Para a irmã de 6 meses.

O menino está preparado, caso a Justiça decida que ele terá de voltar aos EUA?

JOÃO PAULO: Em todos os relatos aos psicólogos, quando pensa na possibilidade de não estar mais na família que reconhece ser a sua, ele mostra um grau de nervosismo e ansiedade muito grande. Ele já falou que ia quebrar tudo, que ia destruir tudo, que ia berrar e chorar. Vou lutar até onde for para não deixar isso acontecer. Como brasileiro, vou respeitar a lei acima de tudo. Se me provarem que o melhor para o Sean é não estar aqui, ao lado da irmã, do lado do pai, da avó, da família que o ama, que é melhor ficar nos Estados Unidos, todos nós mudaremos a nossa vida para que essa ruptura não aconteça. Pensamos sempre no bem-estar dele. Quero continuar, mesmo sabendo que tem gente aí, depois de tudo o que eu dediquei, fiquei do lado da mãe, acordei de manhã, dei remédio quando estava doente, que nunca perguntou e nem sabia que eu existia. Agora, chega e diz: "Me devolve aqui, porque não te pertence". Ele não é objeto. Não é mesa, não é cadeira, não é carro. Nunca vou deixar de lutar por ele. O amor que tenho por ele é o mesmo amor pela Chiara. Dói demais a possibilidade louca de não ter o meu filho do meu lado. Agora, se meu filho não estiver do meu lado, vou para os Estados Unidos de mês em mês. É o que um pai de verdade faria.

Em carta que escreveu a amigos, que acabou vazando, o senhor usou uma expressão forte para se referir ao David: "vagabundo".

JOÃO PAULO: Essa carta vazou, não publiquei na imprensa. Era uma carta para o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que enviei para um grupo de amigos revisarem. Mas é possível que exista menção mais contundente. Não acompanhei a vida deles nos EUA. Minha vida com a Bruna aconteceu depois. Sei que a Bruna sustentava uma casa lá. Bancava comida, empregada. Ela era quem alimentava a família e pagava o plano de saúde.

Como você vê esse empenho dele agora?

JOÃO PAULO: Outra grande mentira. Não posso acreditar que um pai, morrendo de saudades, possa ter ficado cinco anos sem ver o filho. Veio sete vezes ao Brasil. O que vale mais: o amor ou escutar uma estratégia de advogado? Que amor é esse? Só se tornou o pai mais amável, mais maravilhoso do mundo, quando a Bruna morreu. Isso ninguém me responde.

A carta faz também referência à questão da herança.

JOÃO PAULO: O Sean é herdeiro da Bruna. Nós montamos negócio de moda infantil, que se tornou um belo sucesso. Portanto, soa muito estranho, depois que a morre a mãe, com a expectativa de herança da criança, com a possibilidade de gestão dessa herança, não parecer interesse. Se não fosse, teria aparecido? Isso parece a resposta mais razoável.

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