Título: Atas mostram hesitação de Costa e Silva antes do AI-5
Autor: Franco, Bernardo Mello; Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 24/03/2009, O País, p. 3

Consulta a documentos até então secretos é aberta ao público.

A cinco meses de editar o Ato Institucional número 5 (AI-5), que mergulhou o país numa longa temporada de censura e perseguição política, a cúpula da ditadura militar assistia com preocupação às manifestações estudantis de 1968 e discutia internamente os riscos de uma guerra civil. Abertas ontem pelo governo, as atas das reuniões do Conselho de Segurança Nacional mostram que a linha-dura do regime acusava estudantes, intelectuais, jornalistas e bispos católicos de seguirem ordens de Cuba para derrubar os generais e implantar o comunismo no Brasil. Pressionado para endurecer o regime e tomar medidas enérgicas contra os esquerdistas, o presidente Costa e Silva ainda adotava um discurso legalista e dizia defender "o livrinho", referindo-se à Constituição.

Realizada entre 11 e 16 de julho de 1968, no Palácio Laranjeiras, a 41ª reunião do Conselho teve debates acalorados sobre a onda de protestos contra a ditadura. O secretário-geral do órgão, general Jayme Portella de Mello, definiu os estudantes que tentavam fazer a revolução nas ruas como massa de manobra do governo de Fidel Castro. "Já está caracterizado o apoio financeiro externo à subversão. Sem dúvida, há uma coordenação dessas ações com atividades de intelectuais, artistas, compositores e outros elementos de esquerda, cada vez mais audaciosos. É nítida a existência de uma campanha dirigida para fazer crer que o povo está sendo reprimido por um regime ditatorial, entreguista, ultrapassado, que nada faz em favor dos brasileiros", esbravejou, antes de acusar a ala progressista da Igreja de pregar a guerrilha.

Chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), o general Emilio Garrastazu Médici, que assumiria a Presidência em outubro de 1969 para governar no período de mais tortura, cobrou rigor para enquadrar a oposição. "Está em curso um plano das esquerdas radicais com o apoio de políticos e cassados para a tomada do poder", afirmou. O ministro da Marinha, almirante Augusto Rademaker, defendeu abertamente a cassação de parlamentares: "Acho que a segurança nacional está acima de qualquer imunidade. Houve uma manifestação em Brasília, senadores e deputados abraçados a subversivos, e nada aconteceu".

Tão difícil quanto escolher uma miss

Apesar de pertencer à linha-dura, Costa e Silva foi cauteloso. Num discurso emocionado, ele tentou convencer os colegas a não radicalizarem. "A ditadura jamais será uma solução para o Brasil", disse o marechal, que assumiu o cargo sem um só voto. "Entendo, como revolucionário, que qualquer ato fora da Constituição no momento será uma precipitação. Será, como se diz, um avanço no escuro sem necessidade. Mais uma vez serei acusado de imobilismo, mas a situação continuará como está", desabafou.

Antes de anunciar o veredicto, Costa e Silva surpreendeu os ministros ao relatar um encontro com candidatas a miss: "Eu sou homem habituado em toda a minha vida a tomar decisões. Ainda outro dia, eu disse às misses que não desejaria estar naquele júri porque seria uma decisão difícil".

Nas sessões seguintes ao AI-5, cuja ata foi publicada ano passado pelo GLOBO, o órgão passou a se dedicar às cassações. A caça às bruxas não poupou nem aliados de primeira hora do golpe, como o ex-governador Carlos Lacerda, definido por Costa e Silva, em em 30 de dezembro de 1968, como "panfletário que se intitula o dono da Revolução". "Posso declarar que tive a maior bondade, ao assumir o governo, em recuperar esse homem", disse o general, antes de reclamar que o udenista o havia chamado de burro.

Em 16 de janeiro de 1969, ao cassar os ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva, do Supremo Tribunal Federal, o marechal disse que a intervenção na Corte já vinha tarde: "Vamos tomar algumas medidas para sanar uma das maiores omissões da Revolução de 1964, que foi justamente a de ter se considerado inatingível o STF".

Depois disso, os generais levariam dez anos para discutir pela primeira vez, em caráter oficial, a anistia aos perseguidos pelo regime. Na 54ª reunião do Conselho, em 27 de junho de 1979, o presidente João Figueiredo admitiu, em tom conciliador, a volta dos exilados. O general ainda resistia, porém, à tese da anistia ampla, geral e irrestrita.