Título: Atas mostram como militares faziam cassações
Autor: Franco, Bernardo Mello; Éboli, Evandro
Fonte: O Globo, 25/03/2009, O País, p. 10

"É um homem que ainda pode ser recuperado", disse Costa e Silva sobre Covas, antes de aplicar pena máxima.

BRASÍLIA. As atas do Conselho de Segurança Nacional mostram que os militares usavam critérios distintos, além de arbitrários, para absolver ou cassar mandatos e direitos políticos com base no AI-5. Em alguns casos, ter um bom amigo nas Forças Armadas bastava para salvar a pele de um acusado de subversão. Em outros, uma suspeita vaga de simpatizar com o comunismo era suficiente para decretar o fim da carreira de políticos jovens e promissores.

Os dois fatores pesaram no julgamento de Mario Covas, em 16 de janeiro de 1969. Ao anunciar seu processo, o presidente Costa e Silva definiu Covas: "Um rapaz que conheço pessoalmente, simpatizo muito com ele, mas que se excedeu demais em sua atuação política". O vice-presidente Pedro Aleixo citou um pronunciamento do então deputado do MDB, acusando-o de porta-voz de agitadores: "Embora seja muito inteligente, ele não tem capacidade literária para fazer discursos dessa natureza".

O ministro da Justiça, Gama e Silva, foi mais incisivo: "Posso dar meu testemunho, como homem de São Paulo, da ativa atuação comunista do senhor Mario Covas". O presidente ainda tentou aliviar a punição: propôs a cassação do mandato sem suspender os direitos políticos de Covas por dez anos. "Por ser religioso, desejo que não haja vingança pessoal. É um homem que ainda pode ser recuperado", apelou. Isolado, o marechal acabou aplicando a pena máxima.

Costa e Silva foi menos piedoso com Niomar Moniz Sodré Bittencourt, dona do "Correio da Manhã", presa por publicar artigos contra a ditadura. "Ela é violentamente agressiva, vem desafiando gregos e troianos", disse. Após cassar outra mulher, a deputada Yara Vargas, ensaiou um gracejo: "Confesso que procurei não atingir as senhoras".

As atas traçam um perfil peculiar e inconstante do marechal do AI-5. Em alguns momentos, mostrava-se ansioso para cassar os acusados. "Vamos agora ver o caso de dois homens da Arena. Eles têm um passado que ninguém sabe explicar como não foram cassados antes", disse, em 1969. No mesmo dia, aceitou reduzir a pena do deputado João Herculino Lopes: "Em face da brilhante defesa do senhor vice-presidente, o presidente resolve castigá-lo apenas com a cassação do mandato. É possível que, com esse corretivo, ele se recupere". Em outra ata, afirmou: "Não visto nem reivindico a capa de ditador".

Os motivos para perder o mandato podiam ser mais prosaicos. Um deputado carioca da Arena perdeu o mandato por batizar uma rua no Méier com o nome de um sargento comunista. No governo Geisel, as acusações de corrupção pesaram em julgamentos como o do deputado estadual Eurico Guimarães Neves, de São João de Meriti. Sua ficha no SNI era contundente: "É apontado como desonesto, corrupto e aproveitador. Muito ligado a um maconheiro e distribuidor da erva maldita, o que robustece as acusações de que conseguiu fortuna explorando tráfico de entorpecentes. É considerado pistoleiro e indivíduo de péssimo caráter".

Mas o governo Geisel também punia discursos. Em 1976, o deputado Lysaneas Maciel desabafou na tribuna: "Estamos nos acostumando com a falta de liberdade. Estamos nos acostumando com a censura de baixo nível (...). Estamos nos acostumando com o desaparecimento de brasileiros, sua tortura, sua morte presumida. Este Congresso aceita tranquilamente o fato de que, neste momento, pelo menos cinco ex-parlamentares estejam sendo mortos e torturados". Foi cassado dias depois.