Título: SNI: Brizola e Cesar faziam caixinha
Autor: Franco, Bernardo Mello
Fonte: O Globo, 29/03/2009, O País, p. 3

Em pleno processo de abertura política, a ditadura militar acionou um sofisticado esquema de espionagem para vigiar cada passo de Leonel Brizola, primeiro governador do Rio eleito por voto direto desde o golpe de 1964. Arquivos secretos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) revelam que o cerco ao pedetista mobilizou órgãos de inteligência das Forças Armadas, transformados em reduto da linha dura no fim do regime, e arapongas infiltrados em ministérios civis e estatais. Herdados pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), os papéis revelam que a bisbilhotagem atingiu a vida privada do ex-governador e de sua família. Os arapongas também levantaram suspeitas de corrupção na gestão pedetista.

Dossiês do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) afirmam que houve cobrança de propina do jogo do bicho e de empresas de ônibus. Os relatórios não apresentam provas e não indicam ter originado investigações formais, mas são categóricos nas acusações.

Em janeiro de 1985, informe do Cenimar acusou o governo Brizola de autorizar reajuste de 36% nas tarifas de ônibus em troca de Cr$ 500 milhões em propinas ¿ o equivalente, em valores de hoje, a R$ 980 mil. ¿As empresas concordaram em contribuir em determinada quantia para a caixa do PDT, contribuição essa proporcional ao número de ônibus de cada concessionária¿, diz o texto, acusando Brizola de ratear o dinheiro entre o partido e projetos de educação do governo.

Segundo o informe, a caixinha seria administrada pelo então secretário de Fazenda, Cesar Maia.

Depois, frota encampada

Em dezembro do mesmo ano, Brizola declarou guerra ao setor e encampou 16 empresas que controlavam 30% da frota do estado. Procurado pelo GLOBO, Cesar disse que a acusação é ¿difícil de ser verdadeira¿ e negou participação no suposto caixa dois.

Em outro relatório, de 1983, o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) acusa Brizola de dar ¿orientação verbal¿ à Polícia Civil e à PM para suspender a repressão ao jogo do bicho em troca de caixinha trimestral de Cr$ 400 milhões (cerca de R$ 784 mil). O acordo envolveria o depósito dos lucros do bicho no Banerj e a divisão de propinas entre batalhões e o Estado-Maior da PM. São citados dois secretários já falecidos, mas não são listados os bicheiros envolvidos no esquema.

¿Houve acordo entre o alto escalão do PDT e os banqueiros do jogo do bicho¿, diz o informe do Cisa.

Segundo o relato, os recursos supostamente arrecadados com o bicho iriam financiar duas ações: ampliação da rede de atuação do PDT no país e montagem de caixa para futura campanha de Brizola à Presidência da República.

Os documentos mostram que a máquina de investigação contra Brizola continuou a funcionar mesmo depois da posse na Presidência de José Sarney, primeiro civil a suceder aos generais. De 1982, quando foi eleito numa eleição marcada por suspeitas de fraude, a 1986, quando passou o cargo ao desafeto Moreira Franco, Brizola foi citado em 1.460 dossiês do SNI. As informações eram processadas nas sedes do órgão no Rio e em Brasília antes de serem resumidas em informes encaminhados à Presidência da República.

Pouco depois de pôr a faixa presidencial, Sarney recebeu um dossiê sobre a vida privada do governador. Na última quinta-feira, o presidente do Senado contou ao GLOBO que o informe foi entregue em seu gabinete pelo general Ivan de Souza Mendes, último ministro-chefe do SNI.

¿ Isso era prática rotineira no regime militar. Nos primeiros dias, me mandaram um informe sobre a vida privada de Brizola. Rasguei e disse: ¿General, o senhor está proibido de fazer levantamentos dessa natureza¿ ¿ contou Sarney.

Convencidos de que Brizola usaria o cargo como trampolim para o Planalto, os militares interpretavam cada lançamento de projeto como trunfo para uma futura campanha à Presidência.

Em janeiro de 1984, no apagar das luzes do governo do general João Figueiredo, o SNI enviou ao Conselho de Segurança Nacional um longo relatório sobre a administração pedetista.

O texto condena a construção dos Cieps e do Sambódromo, duas marcas da gestão de Brizola: ¿Tais projetos buscam a autopromoção e a projeção política necessária para deixá-lo em condições de concorrer numa eleição à Presidência da República¿.

Três meses depois, outro informe acusou o governador de usar a máquina para engrossar o maior comício carioca da campanha Diretas Já. Em 10 de abril, um milhão de pessoas se juntaram na Candelária para reivindicar o direito de votar para presidente. Segundo o SNI, Brizola teria ordenado que os órgãos estaduais zelassem pela presença dos servidores.

As relações de Brizola com a imprensa foram alvo dos arapongas. Relatórios registram a insatisfação do SNI com veículos considerados alinhados ao governo. Um informe ataca o ¿Pasquim¿, chamado de ¿jornaleco¿ e ¿semanário esquerdista de linha indefinida¿.

Outro revela pressões sobre o dono da extinta TV Manchete: ¿Adolfo Bloch, em contato mantido com autoridade militar, comprometeu-se em diminuir o apoio propagandístico que vem dando a Leonel Brizola¿.

O tom dos relatórios mostra o ódio dos militares pelo pedetista. Em setembro de 1983, o Centro de Informações do Exército registrou: ¿Brizola continua sendo o mesmo político inescrupuloso, falacioso e interesseiro, cujas metas ambiciosas e personalistas procurará atingir usando as armas que puder, em detrimento de princípios morais ou éticos¿.

Um ano depois, o SNI acusou Brizola de não ter aprendido nada com o exílio: ¿Ao político que a Revolução de 64 baniu, passados tantos anos, não serviu de lição nem contribuiu para mudar-lhe a conduta o tempo em que viveu ou podia ter vivido a experiência que um exílio proporciona. Brizola não descansou e não descansará na sua ação deletéria e impatriótica à frente do governo do Rio¿.