Título: O STF e a liberdade
Autor: Brito, Judith de
Fonte: O Globo, 31/03/2009, Opinião, p. 7

No próximo 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, provavelmente a sociedade brasileira terá uma comemoração especial, em função de duas decisões que o Supremo Tribunal Federal colocou em pauta no mesmo dia: amanhã estão previstos os julgamentos da Lei de Imprensa criada no regime militar e da obrigatoriedade do diploma universitário de jornalista para o exercício da profissão, norma também criada no período do autoritarismo. São temas que extrapolam os interesses de jornalistas e empresas jornalísticas e dizem respeito a um direito fundamental dos cidadãos, que é a liberdade de expressão. Por isso, nada mais adequado do que examiná-las no mesmo momento, definindo de forma clara o exercício da liberdade estabelecido pelos parâmetros democráticos da Constituição de 88.

A Lei de Imprensa foi criada em 1967 a partir de princípios autoritários.

Por ela, jornalistas podem até ser presos em função do que escrevem ou jornais podem ser recolhidos das bancas. Trata-se de legislação antidemocrática, que tem o objetivo de limitar a difusão de informações e opiniões, impondo um ambiente obscurantista para a sociedade. Nunca é demais assinalar que uma sociedade só evolui com plena liberdade para o debate, a troca de opiniões e a divulgação de informações. Essa Lei de Imprensa é tão absurdamente fora do contexto democrático brasileiro que mal vinha sendo aplicada pelo Poder Judiciário. Mas é preciso jogá-la de vez na lata de lixo da história.

É óbvio que eventuais erros cometidos no jornalismo têm que ser punidos.

Para isso, deve haver legislação que preveja direito de resposta e penas contra calúnia e difamação dentro de critérios objetivos e equilibrados.

Uma legislação mínima, que garanta os direitos individuais diante do direito maior da sociedade à liberdade de expressão, mas que nunca possa significar intimidação contra essa liberdade.

Essa legislação mínima, por exemplo, poderá definir de forma categórica o impedimento à censura prévia.

Embora esse seja um princípio constitucional, a censura prévia vem sendo exercida com frequência em nosso país por meio de sentenças judiciais.

Semana passada, por exemplo, um juiz do Ceará impediu o jornal ¿O Povo¿, de Fortaleza, de noticiar qualquer informação de processo sobre a prática do jogo do bicho no estado.

Foi censura pura e simples, em decisão inteiramente inconstitucional, contrária ao direito dos cidadãos de serem livremente informados.

É dentro do conceito democrático de que a liberdade de expressão é um bem maior da sociedade que se coloca também a questão da limitação do exercício do jornalismo apenas para quem tem o diploma universitário de jornalista. Essa norma, imposta por uma Junta Militar em 1969, no auge do autoritarismo, também agride a liberdade de expressão, já que reserva a um determinado grupo o exercício de uma profissão que tem como matéria-prima a divulgação de informações.

Além de cercear a liberdade de expressão, a obrigatoriedade do diploma empobrece o jornalismo, impedindo que talentos de outras origens possam exercer a nobre atividade de informar a sociedade.

Tanto é assim que são pouquíssimos os países do mundo, sobretudo no mundo democrático, que têm norma similar, por sua evidente característica corporativista e contrária aos interesses gerais da sociedade.

São muito bem-vindas as boas escolas de jornalismo, pois ajudam a qualificar quem deseja exercer a profissão, mas é um equívoco imaginar que só os que passam por elas serão bons profissionais. Que o digam (só para ficar nos exemplos dos que não estão mais vivos) profissionais de referência como Carlos Castello Branco, João Saldanha e Cláudio Abramo, entre tantos outros.

Jornalismo não é uma atividade técnica, como medicina ou engenharia.

Ele se baseia, sobretudo, no talento e na formação humanista.

O que está em julgamento nas decisões que o Supremo tomará sobre a Lei de Imprensa e a exigência do diploma de jornalista para a prática da profissão é mesmo o alcance da liberdade de expressão que queremos para a sociedade brasileira.

Pela Constituição, a liberdade deve ser irrestrita, de maneira a assegurar a todos os cidadãos, ao conjunto da sociedade, a oportunidade de se expressar e de opinar da forma como quiserem. Isto é da essência da democracia. Mais do que um conceito abstrato, é um instrumento concreto e objetivo para que se construa um país melhor. Aliás, diante da revolução digital que vivemos, a realidade se impõe e amplia o escopo da prática do jornalismo, tornando obsoletas, na prática, certas regras restritivas. O que precisamos, agora e no futuro, é o que, no passado, construiu a imagem dos veículos de mídia respeitáveis: um jornalismo sério, independente e de qualidade.

JUDITH DE BRITO é presidente da Associação Nacional dos Jornais.