Título: Imprevisão oficial
Autor: Machado, Antônio
Fonte: Correio Braziliense, 15/03/2009, Economia, p. 26

Queda da Selic e ações fiscais criam novos problemas que o governo ignorou quando tudo ia bem.

O presidente Lula é ligeiro em repassar responsabilidades e olhar feio para os lados quando diante de eventos que possam ameaçar sua imagem ou a avaliação do governo. Disse, para não se ir longe, que a crise era com o Bush, o tsunami que bateria aqui como marolinha.

A história se repete. A crise se mostrou mais feia do que supunha o governo, exigindo providências para defender o nível de consumo e o emprego, como queda da Selic e ações fiscais, que desencadeiam novos problemas, embora perfeitamente previsíveis. Importa é saber que as possíveis soluções já haviam sido cogitadas há muito tempo. Não foram consideradas quando não havia incêndio algum a apagar.

O que faz o governo? Ataca o spread bancário (a diferença entre os juros ativos e passivos da banca), que subiu. Mas muito antes da crise já era abusivo. Não se empenhou em aprovar no Congresso o tal ¿cadastro positivo¿, que revela a adimplência do devedor, hoje ignorada pela banca, pois há apenas as listas de inadimplentes. É o que faz a banca cobrar de bons pagadores o beiço dos caloteiros.

A ideia é antiga, parte da ¿Agenda Perdida¿ com a qual um grupo de economistas e empresários formulava propostas ao governo a ser eleito em 2006. O então ministro Antonio Palocci gostou da ideia e mandou executá-la. Ela não foi adiante. Se fosse, a banca ficaria sem o álibi da inadimplência para justificar os altos spreads.

Pegue-se o caso da Selic. Há anos é sabido, como já alertado pela coluna, que a remuneração da caderneta de poupança em 6% ao ano ¿ praticamente real por estar indexada à taxa referencial (TR), além de isenta de Imposto de Renda ¿ constitui um piso para a queda dos juros ativos praticados pelo Tesouro e pelo sistema financeiro.

O problema já aparecera em 2007, quando a Selic chegara a 11,25%, a taxa atual, desestabilizando os fluxos de capitais aplicados em fundos de investimentos da banca e mesmo o giro da dívida pública.

O então secretário de Política Econômica da Fazenda, Júlio Sérgio Gomes de Almeida, convenceu o ministro Guido Mantega a agir, e se fez uma ligeira mexida na fórmula da TR para reduzir, sem alarde, a remuneração da caderneta. Era coisa provisória, para dar tempo a que se fizesse o grande ajuste. Aí o Banco Central voltou a subir a Selic no início de 2008, Almeida saiu do governo e ninguém mais tocou no assunto, como que confiando que a Selic jamais voltaria a cair ¿ algo que, na bucha, diz muito sobre a hipocrisia de tantos no governo e no Congresso contra os juros altos no país.

Fundo é mau negócio Outro grupo de estudos, ligado ao Instituto Talento Brasil (ITB), já levantara, também em 2006, a questão dos juros reais de 6%, que afetam não só a caderneta, mas a solvência dos planos atuariais do sistema de previdência complementar. A dívida em papéis do Tesouro é afetada, e boa parte dela garante a rentabilidade dos fundos de pensão. A Selic a 11,25% dá um retorno real, isto é, sem inflação, de 6,5%, mas isso bruto, sem abater o IR. Os fundos de bancos e a dívida do Tesouro já são maus negócios comparados à caderneta.

Crenças fazendárias Nos debates do ITB, propunha-se que as mudanças fossem de uma vez só nas áreas monetária e fiscal, para não desestabilizar os fluxos financeiros. Atente-se que várias instâncias do Estado extraem das aplicações meio compulsórias em títulos do Tesouro as receitas que equilibram suas contas. Na Fazenda, há quem ache que a Selic menor favoreça o alongamento da dívida, transferindo-se o capital posto em papel corrigido pelo overnight para os indexados à inflação ou com taxa prefixada. É. Mas toda vez que os papéis pré não deram o retorno julgado satisfatório a banca ou forçou o aumento dos juros ou os devolveu, o que é outra forma de pressão eficaz, servindo-se da faculdade da liquidez imediata conferida à dívida em poder dos bancos. O dinheiro sai do longo prazo e volta pelo overnight.

Lula evita confusão Tais questões foram tratadas pelo senador Aloizio Mercadante (PT-SP) com o presidente do BC, Henrique Meirelles, durante sessão da comissão do Senado criada para discutir a crise. Outra proposta do ITB pode entrar no debate: reformar o orçamento fiscal, fundindo-se os programas sociais em uma megarrubrica, para permitir que se remanejem verbas conforme a prioridade. O governo poderia voltar a governar sobre mais de metade do orçamento. Essa proposta também é velha, de 2006. É mais fácil a Lula lamentar o fim da CPMF, cobrar a oposição e dar bronca. Agora em Obama. Os falsos brilhantes Por tais coisas é que já se disse que grandes decisões políticas são tomadas à beira do abismo. Rahm Emanuel, chefe de gabinete de Barack Obama, é adepto dessa tese. Os anos de bonança ocultaram os problemas graves, criando a aparência de normalidade que só maluco poderia contestar. No Brasil, por exemplo, o fiscal é tratado como sem problemas. Ao se olhar de perto, percebe-se que do orçamento, para uma carga fiscal de 40% do PIB, só sobram centavos para ações de emergência. Os bancos públicos também estão esgarçados, fazendo de depósitos compulsórios o recheio de ações como o crédito rural. Crises profundas tiram o brilho dos falsos brilhantes.