Título: Na crise, classe C ainda vai às compras
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 05/04/2009, Economia, p. 27

Estudo mostra que 76% das pessoas dessa faixa de renda não abrem mão de manter padrão de consumo

Depois de transpor à barreira da exclusão social, a classe C foi às compras, gostou da experiência e assumiu definitivamente seu lado consumista de ser. A ascensão social foi alimentada nos últimos três anos pelo aumento de renda e a abundância de crédito. Apesar da crise, a nova classe média - como passou a ser chamada esta parcela da pirâmide social brasileira -, se recusa a abrir mão das conquistas materiais nesse período. A constatação é de pesquisa do Ibope Inteligência e da agência Nova S/B, que juntos saíram em campo para desvendar os mistérios da classe C no levantamento "Projeto + 100".

A hipótese de que a classe C é um monolito não se confirmou. Ao contrário. A pesquisa constatou que, apesar de compartilharem o mesmo estrato social, estes consumidores têm comportamentos e perfis de consumo diferenciados. São três os tipos de consumidores detectados no estudo: o consumista, o planejador e o retraído. Os dois primeiros não abrem mão das compras e são a grande maioria da classe C no Brasil. Eles somam 23,1 milhões de pessoas e representam 76% dos consumidores homens e mulheres, de 18 a 64 anos, dessa classe, cuja renda média familiar varia de mil reais a R$2.500. Já os retraídos são uma parcela bem menor: 24%.

Ousadia, vaidade e ambição são algumas das características do consumista, que costuma gastar por impulso e para quem o ato de compra é uma constante fonte de prazer. O planejador, por sua vez, não é facilmente influenciável, além de mais discreto e cauteloso. A relação custo-benefício está presente nas escolhas que faz. O retraído não está nem aí para símbolos de status e moda. Só pensa em preço. Seus hábitos de consumo são considerados conservadores.

Pesquisado recebeu R$300 em 3 meses

Depois de entrevistar 500 pessoas em 11 cidades brasileiras, a pesquisa acompanhou por três meses, de setembro a novembro últimos, 31 famílias, entre Rio, São Paulo, Recife e Porto Alegre. A sondagem começou a ser feita exatamente quando a crise global se agravou, em setembro, com o colapso do gigante bancário americano Lehman Brothers, e foi concluída, em novembro, quando o Brasil já começava a registrar as primeiras vítimas da turbulência.

Os escolhidos foram pessoas responsáveis por pelo menos 50% das compras, e não necessariamente os de maior renda na casa. Cada um dos pesquisados recebeu cem reais a cada mês, perfazendo R$300 ao fim da pesquisa. Não havia definição nem regra para uso deste dinheiro, apenas a exigência de anotar as despesas num diário.

Dos 31 entrevistados, a pernambucana e beneficiária do Bolsa Família Maria dos Prazeres está entre os considerados consumistas. Apesar de não ter dívida em bancos, lojas ou cartão de crédito, ela está devendo a amigos e vizinhos. Maria não trabalha fora e possui uma venda de doces na varanda da casa em Recife para complementar a renda familiar. Seu marido Valmir, que trabalha como vigilante, acumulou dívida com empréstimos e consórcio. O casal não aproveitou a renda extra de R$300 para abater dívida, mas sim para comprar roupa para o filho Lucas, de 7 anos, e fazer compras no supermercados.

- Aproveitei também para comprar perfume - disse Maria.

Já a paulista Sheila Barbosa Moritz Oliveira, que mora com o marido Glicério e o filho Caique, de 5 anos, é uma típica planejadora. Ainda que a família tenha dívidas, o endividamento está totalmente sob controle. A família, que vive na zona Sul de São Paulo, só paga o cartão de crédito à vista:

- Nunca compro por impulso, mas gostaria de ser mais consumista - admite Sheila, que alimenta o desejo de abrir um salão de beleza.

A "propensão ao consumo" foi o que mais surpreendeu a diretora de Atendimento e Planejamento do Ibope Inteligência, Sílvia Cervellini:

- O preço ainda é um fator importante para vender produtos para a classe C, porém esse consumidor quer itens com características antes reservadas para camadas mais ricas.

A grande maioria dos pesquisados (72%) ainda não alterou seu padrão de consumo por causa da crise financeira, talvez porque em nenhum dos domicílios pesquisados tenha sido encontrado um desempregado.

- De qualquer forma, quando sentir o efeito da crise na sua renda mensal ou na sua capacidade de rolar suas dívidas, a tendência é de que apenas posterguem os gastos menos essenciais e urgentes, mas sem abrir mão do padrão de consumo e de vida conquistado e tão apreciado - analisa João Roberto Vieira da Costa, sócio da Nova S/B

Dos computadores e telefones celulares de última geração, passando pelos tênis de marca, pelas roupas, os eletrodomésticos e até os cosméticos saíram do campo das aspirações e passaram a caber no orçamento das famílias da classe C. E são estas conquistas, revela a pesquisa, que a nova classe média não quer abrir mão, ainda que o estudo tenha sido feita num momento especifico dos impactos da crise mundial no país.

A pesquisa constatou, por exemplo, que nenhum dos entrevistados têm qualquer tipo de poupança e 93% deles apostam que a situação econômica nos próximos 12 meses vai variar entre "um pouco melhor" e "muito melhor". Enquanto 20 das 31 famílias que participaram da pesquisa têm a intenção de manter o mesmo nível de compra nos próximos três meses.

- Em janeiro, já verificamos uma retração da classe C e este movimento de migração para a classe D, ainda que tímido, já é um reflexo da crise global no país - analisa o economista e estudioso do assunto Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas (FGV), comentando que em dezembro de 2008, a classe C representava 53,8% e, em janeiro último, já tinha caído para perto de 52%.

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