Título: Carências de renovação
Autor: Corrêa, Maurício
Fonte: Correio Braziliense, 22/03/2009, Opinião, p. 17

Advogado

Um rapaz roubou uma aeronave no aeroclube de Brasília e a jogou contra o pátio de estacionamento de um shopping em Goiânia. Quis imitar os pilotos suicidas da catástrofe novaiorquina do World Trade Center. Por milagre, ninguém morreu, com exceção do piloto e sua filha. Tudo indica que a verdadeira intenção fosse arremessar o avião contra o estabelecimento comercial. Se tivesse atingido o alvo, é imprevisível dizer quantas pessoas não teriam morrido. A vida é assim mesmo. Corre-se risco em toda parte. Ficamos sob tensão do imponderável onde quer que estejamos. Vive-se não só sob perigo de ações de marginais de crimes comuns que nos atacam, como também de malucos que se põem entre nós, sem que saibamos quem sejam e o que planejam fazer.

Além dos insanos e criminosos comuns que desestabilizam a paz social, ainda se tem que conviver com os que, alheios aos deveres primários de cidadania, solapam os bens éticos e morais da nação. O Estado é organização política do povo. A nação, como expressão dele, não é ente individual de que se possa dispor. É organismo coletivo despido de particularismo. A função finalística do Estado é proporcionar o bem dos cidadãos. Explica-se, assim, por que os institutos constitucionais devem ser cultuados e respeitados, oriundos que são da vontade soberana do povo. A despeito disso, e com o objetivo de dar cobro aos transgressores da ordem, o que se tem visto é que os mecanismos institucionais de defesa do Estado não têm sido capazes de conter ações da marginalidade social.

Os crimes praticados contra a nação por agentes desse naipe têm sido repetitivos e constantes. A Constituição criou mecanismos adequados instrumentalizadores para seu combate. Não se pode dizer que não haja previsão legal destinada a sofrear-lhes a atuação. Existe e é bem variada. Deu competência, por exemplo, ao Ministério Público para que promova medidas inibidoras contra eles. Como os membros da instituição não têm o dom de onisciência, não é possível que possam agir para que obliterem todos os multiformes expedientes concebidos para dilapidar a nação. Ademais, por carência de recursos, são poucos os órgãos encarregados de exercer o ofício, se comparados ao geométrico crescimento dos malfeitores.

Nem se diga que as origens da delinquência de assaltar o Estado residam na falta de educação escolar do povo. Pode-se afirmar, nesse contexto, que a hipótese é exceção à regra. Os autores dos delitos que fazem da vítima o Estado não são pessoas que não puderam frequentar escolas. De gente que não saiba ler e escrever ou que seja semialfabetizada. Ao contrário, são violações engendradas por pessoas esclarecidas, muitas delas detentoras de títulos universitários. Tanto são instruídas que, com competência e arte em busca do que querem, criam meios e maquinam formas de fugirem do cumprimento da lei.

Duas passagens da crônica jornalística recente, para ficar apenas nelas, bem retratam o quadro desolador de desvios de conduta de servidores da administração pública. Muito bem fez, para exemplificar, no caso de irregularidades constatadas no Senado, haver seu presidente determinado as medidas que ora estão em fase de implantação, todas visando pôr termo aos abusos encontrados. Nada melhor do que, igualmente, ter ordenado a entrega à Fundação Getulio Vargas da tarefa de reorganizar o funcionamento das muitas diretorias da casa que preside. Também agiu com exação ao demitir diretores de diversas secretarias, para, se for o caso, reaproveitar posteriormente os titulares habilitados a melhor desempenhar as funções dos quadros. A sucessão de fatos noticiados pela imprensa acerca de irregularidades no Senado não se compadece com a tradição de uma casa legislativa da estatura constitucional que é.

Atos contra a administração pública não se restringem a peculatos e a outros crimes hoje recorrentes na ordem do dia da administração pública. Estendem-se a outras espécies de delitos, como os que emergem da promíscua relação então existente entre agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e a Polícia Federal. Vieram à tona nos escombros remanescentes da Operação Satiagraha. Dimanam de elementos concretos já conhecidos, e que, segundo declarações do presidente da CPI dos Grampos, já permitem pedido de indiciamento do ex-diretor-geral da agência e de seu ex-subordinado.

Quanto ao ex-presidente do inquérito da Satiagraha, a própria PF acaba de indiciá-lo pelo vazamento de dados sigilosos, e por ter também usado agentes da Abin em trabalhos de degravação e análise de grampos, vedados por lei. O conluio dessa estranha parceria permitiu que servidores encarregados de serviços de inteligência se imiscuíssem em atividades investigatórias exclusivas de órgão policial. É grave o fato, tanto mais que, por trás dele, podem se esconder os verdadeiros propósitos que induziram a escuta clandestina realizada em telefone privativo do presidente do Supremo Tribunal Federal.

Tanto os fatos verificados no Senado Federal quanto os ocorridos na Abin e PF mostram um Brasil farto de torpezas e de calamidades morais. Não é sem razão que, segundo dados aferidos por organismos internacionais, o país é um dos campeões mundiais de corrupção.