Título: Confissões de um caixa dois
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 19/04/2009, O País, p. 3

Homem de confiança do senador Camata por 19 anos denuncia rotina de mesadas de empreiteiras e notas frias

Marcos Vinícius Moreira Andrade tinha orgulho de ser chamado de o "Lombardi" do senador Gerson Camata (PMDB-ES), numa referência ao lendário locutor do programa Silvio Santos. "Conheciam a minha voz sem nunca ter visto a minha cara". Por 19 anos, esse discreto economista mineiro de 56 anos desempenhou um papel central nos mandatos do senador capixaba: a gestão do dinheiro, incluindo as finanças de sete campanhas eleitorais. Na semana passada, magoado por ter sido abandonado pelo senador, resolveu mostrar a cara. Em depoimento gravado, ele trouxe à cena o lado sombrio de campanhas eleitorais e de um gabinete parlamentar por onde circulam, afirma, mesadas de empreiteiras, recibos falsos de contas eleitorais e funcionários obrigados a pagar despesas do chefe com os salários do Senado.

Foram meses de tormento até a decisão de falar. "Se antes me sentia pressionado por um torno mecânico, agora estou aliviado", desabafou, em mais de três horas de depoimento. Embora more em Vitória há quase três décadas, Marcos Vinícius Andrade afirma que os poucos que o conhecem se acostumaram a chamá-lo de "Marcos Camata", tamanha era a sua intimidade com o senador.

- Eu tinha a chave da casa dele. Era só abrir o portão. Não precisava tocar a campainha - disse.

A parceria, iniciada em 1986, contabiliza três campanhas do parlamentar capixaba ao Senado (1986, 1994 e 2002) e outras quatro de sua mulher, a deputada federal Rita Camata. Mas a longa convivência foi rompida em 2005, quando o contador de Camata assumiu a presidência da Banestes Seguros, a seguradora do governo do estado. Após cumprir mandato de dois anos e meio, Marcos não foi reconduzido ao cargo. Ao procurar o antigo patrão, pedindo ajuda, a desilusão:

- Ele me recebeu em pé, apressado. Me tratou como eu o vi fazer, por 19 anos, quando dispensava as pessoas que não lhe agradavam.

Dois anos após a ruptura, o ex-caixa decidiu contar o esquema e abriu um bloquinho, diante do repórter, para revelar todas as supostas ilegalidades que viu acontecerem nos anos em que passou no escritório de Camata, como funcionário de sua total confiança. Desde 1989 contratado pelo gabinete de Camata no Senado até ir para o Banestes Seguros, sempre ficou em Vitória, sem dar expediente em Brasília, e cuidava das contas de campanha e pessoais do senador. Diversos parlamentares do PMDB capixaba confirmaram a estreita relação entre os dois, e que Marcos era, como atestam documentos oficiais, o caixa das campanhas do senador.

Além do bloco, Marcos exibiu papéis. São poucos. Parte mostra os bons resultados de sua gestão à frente da Banestes Seguros. Na outra parte, a ficha de qualificação de Camata na última campanha para o Senado, em 2002, registra o nome do contador como "responsável pela administração financeira da campanha".

- A primeira coisa que se cobra é a prova. Mas, na época do mensalão, imaginavam que o Roberto Jefferson mostraria uma mala de documento. Ele não mostrou documento algum e, no final, 40 políticos acabaram cassados - diz.

Em seguida, Marcos pegou uma caneta e marcou alguns nomes de uma longa lista de prestadores de serviços da campanha de Camata ao Senado, em 2002. É uma lista oficial, apresentada à Justiça Eleitoral. À medida que ia fazendo as marcações, inclusive de seu próprio nome, o contador informava que essas pessoas não prestaram serviço algum. Pressionadas pelo senador, teriam apresentado recibo falso para "esquentar" quase R$200 mil de sobras de campanha eleitoral:

- Desafio qualquer uma destas pessoas, todas elas ou funcionárias do gabinete ou parentes dos Camata, a provar que efetivamente receberam o dinheiro declarado. Eu estava lá. Vi quando aconteceu.

Depois de entregar a lista eleitoral ao repórter, Marcos voltou a consultar o caderno. Está escrito: "Odebrecht/Terceira Ponte". A anotação se refere a uma das maiores obras de engenharia civil do Espírito Santo, a ponte que liga Vitória a Vila Velha, cuja construção demorou 16 anos. Como governador, Gerson Camata deu um passo decisivo na história da ponte, em 1984, ao assinar contrato com a Odebrecht para concluir a obra.

- Minha ligação com Camata era tão grande que as pessoas falavam as coisas comigo como se estivessem falando com ele. Uma delas foi Silvio Peixoto, da Odebrecht, que uma vez apareceu no escritório do senador com um pacote de dólares - conta o ex-caixa.

Marcos afirma que, sem ser indagado, Silvio contou que o pacote guardava US$5 mil, fruto de um suposto acordo da empresa com o senador que garantiria a Camata uma espécie de participação nos resultados mensais da cobrança de pedágio. Com a morte de Silvio, o contador disse que a tarefa de entregar o dinheiro foi repassada ao engenheiro Cesar Pinto, até hoje diretor da empresa em Vitória.

- Em certas ocasiões, o dinheiro caía porque o movimento do pedágio era menor. Eles faziam questão de me explicar. Eu repassava a informação ao senador, ao entregar o envelope, mas entrava por um ouvido e saía pelo outro. Como ele nada comentava, a conversa morria.

O pagamento regular da mesada, segundo o ex-caixa, teria ocorrido entre 1989 e 1998, até a ponte ser passada pelo governador Vitor Buaiz ao consórcio Rodosol:

- Como a Odebrecht, que deixou de explorar o pedágio, fizera um cálculo de exploração de 25 anos e saiu antes, fez questão de repassar uma indenização ao senador no valor de R$100 mil aproximadamente.

A próxima anotação do caderninho dá a senha para a continuação da entrevista: "salário/condomínio". Marcos disse que, durante 13 anos seguidos, foi obrigado a reservar 30% de seu salário do Senado para o pagamento mensal de despesas pessoais de Camata.

- Quando fui nomeado, ele disse: "Marcos, você vai pagar umas contas". Paguei o condomínio do apartamento do senador, o IPTU, a luz e o telefone. Quando fui cobrar reembolso, tive uma surpresa. Ele disse que, todo o mês, eu teria de fazer aquilo. E sem reembolso.

Marcos disse que a obrigação de pagar só foi suspensa quando o Senado instituiu a verba indenizatória. Mas suspeita que outros funcionários sejam obrigados até hoje a dispor de parte dos salários para as despesas pessoais de Camata.