Título: Baixo clero pede passagem
Autor: Braga, Isabel; Vasconcelos, Adriana
Fonte: O Globo, 23/04/2009, O País, p. 3

BRASÍLIA

Medidas para tentar moralizar o uso da cota mensal de passagens aéreas dos parlamentares, anunciadas ontem pelos comandos da Câmara e do Senado, provocaram reações iradas nas duas Casas. No Senado, o projeto de resolução com novas regras foi aprovado no plenário, mas sob protestos de alguns senadores. Na Câmara, as promessas, anunciadas de manhã, nem chegaram a constar formalmente de um projeto; à tarde, já eram bombardeadas em discursos. Diante da reação, o deputado Michel Temer (PMDB-SP), presidente da Câmara, admitiu a possibilidade de submetê-las ao plenário. E deu uma espécie de anistia geral aos que já fizeram uso da cota pública para viagens pessoais.

A limitação do uso das passagens a deputados e assessores ¿ e, neste caso, com autorização prévia da Câmara ¿, excluindo familiares e amigos, irritou deputados, especialmente do chamado baixo clero. Eles poderão continuar viajando pelo Brasil, sem justificar o uso da cota. Mas, se forem para o exterior, dependerão de autorização da 3aSecretaria.

Ao anunciar a medida em plenário, Temer tentou tranquilizar os deputados.

Disse que atos passados não serão punidos.

¿ Aqueles que se utilizaram das passagens, sem que houvesse regras claras e precisas a respeito, não estavam a cometer ilícitos de qualquer natureza. Para a tranquilidade dos senhores parlamentares, quero reiterar que, no passado, ninguém agiu de forma ilícita ¿ disse Temer.

O deputado Silvio Costa (PMN-PE) foi à tribuna para protestar contra a medida e anunciou que vai recorrer: ¿ É preciso acabar com o teatro da hipocrisia. Não é justo que a mulher e os filhos dos deputados casados não possam vir a Brasília. Eu sou casado, vocês querem me separar? Essa decisão da Mesa Diretora não é correta, é uma decisão acuada ¿ disse ele, sendo aplaudido pelos colegas.

O vice-líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), endossou as críticas às restrições.

¿ Temos múltiplas tarefas, e o mandato restringe muito o convívio familiar ¿ disse Barros.

O líder do PMDB, Henrique Eduardo Alves (RN), contemporizou: ¿ Não foi uma decisão solitária do Temer, que ouviu todos os líderes e os integrantes da Mesa. É natural que, entre 513 deputados, alguns discordem.

Petistas, em reunião da bancada, também reagiram. Muitos exigiram que Temer convoque um horário em rede nacional de TV e rádio para defender a instituição.

O líder do PT, Cândido Vaccarezza ( S P ) , mostrou especial irritação com Fábio Faria (PMN-RN), considerado o estopim do escândalo, ao custear com verba pública passagens de artistas, como sua ex-namorada Adriane Galisteu.

¿ O que queremos é uma reforma administrativa completa. O que foi anunciado hoje é uma bobagem! Queremos também que a Corregedoria puna quem cometeu delitos com as passagens. Nada de passar a mão na cabeça de deputado bonitão... Quer dizer, bonitão para alguns né? ¿ disse o petista.

Também em discurso, o deputado Ciro Gomes (PSB-CE) afirmou que o debate deve ser com a sociedade, e não com a imprensa. E negou que sua mãe tenha viajado com ele com passagem paga pela Câmara.

¿ A população brasileira, a quem servimos, deve ser informada. E não discutirmos com a plutocracia e a mídia ¿ discursou Ciro.

Depois, no cafezinho do plenário, com jornalistas, usou palavrões: ¿ Mamãe viajou uma vez comigo para Nova York, mas pagou a passagem do próprio bolso. No meu gabinete só quem viaja com cota da Câmara sou eu ¿ afirmou Ciro. ¿ De onde saiu que eu viajei com mamãe com passagem da Câmara? Ministério Público? Ministério Público é o c...

No Senado, embora mais discretos, os protestos também foram públicos contra a aprovação do projeto de resolução que restringe o uso das cotas áreas, acabando, por exemplo, com a possibilidade de o parlamentar acumular sua verba de um ano para o outro. O primeiro a contestar as medidas anunciadas pelo presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), foi Epitácio Cafeteira (PTB-MA).

¿ A imprensa está numa onda de denuncismo que pode levar a fechar esta Casa do Congresso.

Procura-se apenas onde está o erro para ir em cima da instituição.

Acho que, daqui a pouco, estaremos recebendo vale-transporte ¿ reclamou Cafeteira, sugerindo que se deixe uma brecha para fretamento de jatinhos como em casos de problema de saúde.

¿ Senador Cafeteira, vossa excelência viajou mediante requisição do serviço médico e em caráter de urgência. Isso continuará da mesma maneira ¿ garantiu Sarney.

Embora o líder do PSDB, senador Arthur Virgílio (AM), também tenha defendido as novas regras, o tucano Papaléo Paes (AP) não escondia sua contrariedade.

¿ Essa indecência de pegar passagem, dar para artista fazer show, para mandar não sei quem para o exterior, é uma vergonha deslavada.

Agora, não podemos pagar por isso.

Posso ir toda semana lá, mas e quando não puder? Vou pagar uma passagem para minha família vir me visitar? Não tem condições¿ protestou Papaléo.

Ao defender as mudanças, Pedro Simon (PMDB-RS) admitiu que usou, pelo menos uma vez, sua cota para levar sua mulher à Europa, para encontrar a ex-candidata presidencial franco-colombiana Ingrid Betancourt: ¿ Nesses 26 anos, fiz uma viagem à Europa, eu e minha mulher. Uma viagem em 26 anos, sem um extra, sem diária, sem coisa nenhuma.

Usei as passagens que tinha. Se isso está errado, reponho, mas nunca ninguém me disse isso. Quero apenas dizer que a questão a ser debatida é o contexto. É muito importante, na parte da ética e da moral, terminar com a impunidade.