Título: A prática da Lei Rouanet
Autor: Barreto, Hugo
Fonte: O Globo, 23/04/2009, Opinião, p. 7

Africção provocada pelo calor de uma discussão pode gerar luz, mas também um incêndio de lamber o prédio inteiro. O bem-construído edifício da Lei Rouanet pede reformas, é certo, mas, na ânsia de discuti-las, ideias são misturadas, água é confundida com gasolina, boas soluções são apontadas como causas de problemas com os quais não têm ligação.

Nessa hora, um mal-entendido pode ser a fagulha fatal, que destrói o prédio e paralisa a atividade cultural brasileira (história trágica, que vivemos no governo Collor, cujas feridas assopramos até hoje).

Vamos a algumas dessas ideias.

Ao defender o seu projeto que visa a substituir a Lei Rouanet, o ministro da Cultura disse a uma plateia de produtores culturais no Rio: ¿Apenas 3% dos usuários da lei ficam com 50% dos recursos.¿ E em seguida: ¿Vejam os casos do Museu do Futebol e o da Língua Portuguesa: feitos com recursos públicos da lei de incentivo e divulgados como projetos privados.¿ Donde se conclui: os dois museus seriam usurpadores do dinheiro público.

O fato de o Ministério da Cultura, em sucessivas gestões, não ter implantado uma política cultural que contemple as demandas do setor, e que as distorções da economia da Cultura reflitam as da economia como um todo, não justifica a desqualificação de um mecanismo que funciona, nem a de iniciativas que traduzem o espírito mesmo da Lei Rouanet.

Senão vejamos: Em ambos os casos, e em muitos outros, o incentivo ao mecenato funcionou: o estado e o município de São Paulo investiram vultosos recursos puramente públicos, porque orçamentários; empresas privadas investiram recursos incentivados ¿ dinheiro de imposto devido que poderia, sem trabalho ou risco, ser pago à Receita ou ir para outro incentivo fiscal mais simples e menos polêmico ¿ e também recursos próprios, não incentivados; tudo desenvolvido por uma organização do terceiro setor, sem fins lucrativos ¿ a Fundação Roberto Marinho ¿, mantida com recursos não incentivados da ordem de R $ 2 0 m i l h õ e s / a n o , apor tados por seus mantenedores.

O resultado: espaços p ú b l i c o s , a p r e ç o s acessíveis, com todas as gratuidades possíveis, sobretudo a estudantes das redes públicas de ensino. São espaços públicos (e essa palavra é uma obsessão neste artigo) revitalizados, de qualidade, de vanguarda, que celebram a cultura brasileira, recuperam áreas degradadas, incentivam o turismo, geram renda e autoestima, e já visitados por mais de dois milhões de pessoas.

O fato de que museus, orquestras, exposições sejam propostos por instituições especializadas e de maior porte é decorrência de sua complexidade.

E para sua realização colaboram artistas, produtores, arquitetos, cenógrafos, técnicos e tantos outros profissionais, de forma coerente com a principal missão da lei, que é o desenvolvimento do setor. Cerca de 300 artistas e dezenas de produtoras independentes trabalharam em cada museu.

Há distorções no setor cultural brasileiro? Claro que há. A Lei Rouanet é a culpada? Claro que não. Talvez seja, senão uma rima, uma solução.

A Lei Rouanet trabalha em duas dimensões: a do fomento e a da renúncia fiscal. Fomento é a aplicação direta de recursos via Fundo Nacional de Cultura. Renúncia é quando parte do Imposto de Renda, em vez de ir para o fisco, vai para um projeto aprovado pelo próprio MinC. Fomento serve para equalizar as distorções ou carências do mercado; renúncia serve para induzir o mercado a se interessar pelo setor. Ambos combinados, como na lei atual, e se bem calibrados pelo gestor, são a solução: este engenhoso mecanismo dinamiza o setor e, por sua pulverização, impede qualquer dirigismo por parte do governo vigente; já o fomento, controlado pelo Estado (governo mais sociedade civil), corrige distorções, estimula novas linguagens, a formação de talentos e a cultura popular. As ferramentas atuais possibilitam isso. Cabe indagar por que não ocorre, mesmo na área de fomento, apesar do forte desejo do ministro.

O novo projeto de lei não ataca as atuais distorções, como a propalada concentração no Sudeste, que poderia ser minimizada com alíquotas regionais diferenciadas ou com a sua ampliação para empresas tributadas pelo lucro presumido e pelo Simples.

E ainda lança o setor cultural na incerteza, com a intenção de jogar recursos que hoje vão diretamente para a área cultural, via renúncia fiscal, na vala comum do Orçamento da União, sempre sujeito a cortes, contingenciamentos e burocracia.

Reduzir a atratividade do mecenato e, portanto, o interesse das empresas pelo mercado cultural só interessa a quem acredita que cultura não precisa de mercado. Ou talvez ao Leão. Mas este tem presas mais suculentas, pois a Cultura consome menos de 1,5% de toda a renúncia fiscal do país. É uma opção ideológica, mas é preciso saber se os brasileiros que trabalham no setor, hoje um dos mais dinâmicos do país, concordam.

Daí avaliarmos o projeto de lei negativamente, pois compromete a sustentabilidade de todo um setor, num momento de grave crise econômica; ¿vilaniza¿ os que fazem, em vez de trazer mais recursos para a cultura; vai na contramão do louvável esforço do presidente Lula de apoiar vários setores nestes tempos bicudos; e ainda remove a sábia proteção que a Lei Rouanet oferece contra o dirigismo cultural.

Imaginem se, no lugar deste, um governo autoritário venha a gerir a vida cultural do país, passando a ter o direito de definir o que é arte e quais projetos teriam ¿relevância cultural¿.

Nesse incêndio morreríamos todos. Asfixiados.

Projeto ministerial remove a sábia proteção que a lei oferece contra o dirigismo cultural