Título: Sem cerimônias com o dinheiro da Viúva
Autor: Lima, Maria
Fonte: O Globo, 26/04/2009, O País, p. 3

O CONGRESSO MOSTRA SUAS ENTRANHAS

Parlamentares defendem gastos pessoais com verba pública.

No Congresso, os parlamentares sabem de cor o conceito sociológico de patrimonialismo: quando o ente público ou representante do povo se apropria de bens do Estado como se fossem seus, particulares. Mas não se encontra um que tenha considerado pecado avançar, em benefício próprio, sobre as verbas públicas que garantem o exercício do mandato. No caso dos desvios das passagens aéreas pagas por Câmara e Senado, o que se ouve é: há 40 anos o dinheiro ou a cota pertence ao parlamentar, para fazer o que quiser. E o que fizeram nos últimos anos foi economizar recursos próprios, bancando com dinheiro público passeios com familiares e amigos para destinos como Londres, Paris, Nova York, Milão, Madri, Roma e, principalmente, Miami.

O uso das cotas de passagens - quase R$100 milhões por ano nas duas Casas - é o exemplo claro de apropriação do dinheiro público para economizar o patrimônio, mas não é o único. Há denúncias de que muitos parlamentares usam o auxílio-moradia, de R$3 mil mensais, para adquirir os flats em que moram em Brasília, usando a verba para pagar a prestação do investimento patrimonial, mas apresentando recibo de aluguel.

Direta ou indiretamente, os parlamentares fazem uso de todas as outras verbas disponíveis para o exercício do mandato: a indenizatória, a de gabinete e as cotas de postagem de correios e de contas de telefones.

Levantamento do Ministério Público do Distrito Federal confirma que 261 deputados, entre líderes, integrantes da Mesa e até o presidente, Michel Temer (PMDB-SP), emitiram, em 22 meses, 1.881 passagens internacionais para parentes, amigos e terceiros, sendo 315 para Miami.

O 2º vice-presidente, Inocêncio de Oliveira (PR-PE), por exemplo, levou mulher, filhas e neto para Paris e Frankfurt, e não considera que errou.

- Eu fazia economia da minha cota, viajava nos voos mais em conta. Nas férias, acho que tinha direito à cota. Família é sagrada - diz, alegando que cumprirá as novas regras.

Um esquema que envolve parlamentares, assessores e agências de turismo alimenta um mercado negro de revenda de passagens da Câmara. Comissão de Sindicância da Câmara investiga 18 deputados (não revelados) por suposta venda de bilhetes de créditos aéreos acumulados nesse mercado paralelo.

O 4º secretário da Câmara, Nelson Marquezelli (PTB-SP), responsável pelo setor de moradia, apresentou uma lista de colegas que recebem auxílio-moradia mesmo tendo imóvel em Brasília. Entre os 25 nomes estão alguns dos parlamentares do Distrito Federal e outros figurões da Casa famosos por gordos patrimônios declarados à Justiça Eleitoral, como os deputados Eunício Oliveira (PMDB-CE) e Paulo Lima (PMDB-SP).

Todos dizem que estão abrindo mão do benefício. O próprio nome de Marquezelli constou da lista. Ele admite ter um apartamento duplex em Brasília, que comprou como investimento, mas afirma:

- Quando fui morar lá, desisti do auxílio. E tem muita gente desistindo.

No caso do uso indevido da verba indenizatória de R$15 mil mensais, para gastos com o mandato nos estados, ganhou notoriedade o deputado Edmar Moreira (sem partido-MG), que repassou mais de R$140 mil, só em 2008, para suas empresas de segurança. Foram muitos os colegas que se solidarizaram com ele, com confissões nos bastidores de que também usavam notas de despesa com combustíveis de postos da família.

"Nunca fiquei com consciência pesada"

A verba de gabinete, R$60 mil para o deputado pagar salários a funcionários de confiança dos gabinetes, também é desviada em benefício pessoal. O caso mais recente foi o do senador Gerson Camata (PMDB-ES). O ex-assessor Marcos Andrade denunciou ao GLOBO e ao Ministério Público que, como funcionário do Senado, repassava 30% do salário para cobrir despesas pessoais do senador, que nega tudo.

O Ministério Público pediu ao Supremo Tribunal Federal instauração de inquérito para investigar denúncia do ex-secretário parlamentar Fábio Lopes Faria, que acusou o deputado Wladimir Costa (PMDB-PA) de ficar com parte de seu salário, entre 2002 e 2005. Ele disse que recebia da Câmara R$3.100, mas entregava tudo a um irmão do deputado. E recebia, por isso, R$500 por mês. O caso nunca foi adiante.

Procurados para comentar os abusos, os parlamentares têm uma resposta padrão: não cometeram ilegalidades porque as regras nunca proibiram esse tipo de comportamento. A grande maioria evita o debate sobre a questão moral e ética.

- Há um sentimento generalizado não só do parlamentar, mas de prefeitos e outros gestores, de que o dinheiro lhe pertence, para fazer o que quiser. Quando entram para gerir o dinheiro público, gerem como se fosse dele. isso aqui na Câmara é uma ilusão. Quando você chega, todos os assessores dizem: faça isso, é natural. Eu aceitei, não tive força para mudar isso sozinho - reconheceu o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que deu passagem aérea para sua filha Tami acompanhar a irmã, Maya, em viagem ao Havaí.

Porta-voz dos descontentes que reagem às prometidas mudanças, o deputado Silvio Costa (PRB-PE) insiste que faz parte da cultura:

- O que existe na cultura da Casa é que a cota é para usar inclusive para viagens de férias com a família. Nunca fiquei com a consciência pesada por ser dinheiro público.

No Senado, os casos mais emblemáticos são protagonizados pela família Sarney. O presidente José Sarney (PMDB-AP) e a ex-senadora Roseana Sarney usaram, em suas campanhas de 2006, a assessoria de servidores contratados pela Casa. O Ministério Público investiga denúncia de que Roseana usou passagens do Senado para levar a Brasília amigos e familiares, que, na época, ficaram hospedados na residência oficial do Senado.