Título: Brasil partido
Autor:
Fonte: O Globo, 30/04/2009, Opinião, p. 6

Com mais um resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em que se evidencia a enorme distância entre escolas particulares e públicas ¿ um abismo criado pela baixa prioridade que o Estado concede à instrução dos pobres ¿, fica claro que o Brasil está na condição de uma nave com todos os instrumentos em perfeito funcionamento, onde a tripulação tem todas as informações de que rumamos para um desastre, mas os procedimentos para evitar o pior deixam a desejar.

O quadro é catastrófico, o que não surpreende, mas continua e deve continuar a assustar: das mil escolas com as piores notas, 965 são públicas; entre as mil melhores, apenas 36, ou 3,6% do universo delas, estão nesta categoria, basicamente federais. E o pior: encontramse em estabelecimentos públicos 85% dos estudantes matriculados no ensino de nível médio. A grande maioria dos jovens, portanto, é mal preparada, sem condições de competir num mercado de trabalho cada vez mais exigente; num país que, como qualquer outro, precisa ter profissionais, em todos os níveis de qualificação, capazes de competir no mundo globalizado.

(Engana-se quem acha reversível, por causa da crise, a interdependência entre as economias.) Por vício ideológico e pura falta de visão, sempre haverá alguém em Brasília que, diante de tamanha distância entre o ensino das escolas de nível médio particulares e as públicas ¿ principalmente estaduais ¿, irá se bater pela solução mais fácil, e errada: cotas. Será uma tragédia, pois elas traduzem a rendição prévia do Estado na luta imperiosa para elevar a escola pública ao mesmo nível das particulares.

Sem isto, o país terá de renunciar à geração de tecnologias de ponta, produção e exportação de bens manufaturados mais elaborados, contentando-se a perpetuar-se como fornecedor de matérias-primas a sociedades asiáticas que têm conseguido educar as populações sem abrir mão do mérito. E, quando algumas dessas matérias-primas se esgotarem, como os minérios, poderá abrir-se um ciclo eterno de nível de vida de África subsaariana.

Para agravar os riscos que o país corre, a ideia, correta, de um Enem para substituir o vestibular deverá ser manipulada em defesa de cotas, para dar condições de suposta ¿igualdade¿ a alunos de escolas públicas na disputa com candidatos formados nas particulares. Será assim que o vírus da degradação do ensino público básico contaminará a universidade.

Em vez de maquiar as diferenças entre escolas particulares e públicas estaduais, facilitando a entrada na universidade de alunos despreparados, por que não concentrar todos os esforços na melhoria dos estabelecimentos públicos? Ora, basta replicar em estados e municípios o modelo de escolas públicas federais, uma prova concreta daquilo que os mais velhos sabem: não é porque está sob o controle do Estado que o ensino tem de ser de má qualidade. Não foi assim no passado, e não é assim em escolas federais.

Entre as 20 melhores do país, lideradas pelo São Bento, do Rio ¿ colégio particular, mantido pela Ordem beneditina ¿, incluemse o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa, Minas (3a); o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Pernambuco (14a); a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, Minas (16a), e o Colégio de Aplicação da UFRJ (17a).

Reportagens de ontem do GLOBO mostraram como, públicas e privadas, as melhores escolas seguem princípios comuns, e de conhecimento geral: professores competentes, bem remunerados, assíduos, e alunos mantidos na escola bem mais tempo do que nos colégios públicos estaduais de baixo padrão. Mais: nenhum desses estabelecimentos desconsidera o mérito como valor primordial. Pelo contrário: os colégios de aplicação costumam submeter os candidatos a testes, o tal ¿vestibulinho¿, assim como os bons estabelecimentos particulares. Se o aluno não consegue acompanhar o ensino, recebe aulas de reforço. Nada de artifícios como aprovações automáticas.

A sociedade, por meio de organizações do terceiro setor, debates, etc demonstra estar mobilizada para ajudar na revolução que o Brasil necessita no ensino básico (infantil, fundamental e médio) público. Há ações meritórias em governos estaduais, onde transcorrem escaramuças entre secretários de educação e um outro sério empecilho à melhoria do ensino público no país: sindicatos de professores. Com o tempo, essas entidades passaram a atuar como ponta de lança de partidos e ajudaram a categoria a se corporativizar. Assim, passaram a ser refratárias a tudo que tente modernizar o ensino. Os governos fingem que remuneram e os professores fingem que ensinam, à espera da aposentadoria especial. É um pacto pela mediocridade.

No segundo governo Lula, a consciência do problema levou ao lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), para que o Executivo federal, enfim, atue junto a estados e municípios na qualificação das escolas do ensino básico. Mas os recursos são escassos.

O governo agiu, com este plano, de maneira acertada, porém seu viés assistencial-populista faz com que dê prioridade a aumentar o salário do funcionalismo, a inflar ainda mais o Bolsa Família e outros programas assistencialistas. O Brasil, infelizmente, sairá da Era Lula como um Estado que gasta boa parte de quase 40% do PIB com aposentados, servidores e esmolas oficiais.

É uma enorme e custosa casa de misericórdia, depositária de votos de cabresto cevados pelo benemérito de ocasião. Enquanto isso, o futuro sombrio de um país educacionalmente partido está exposto no Enem.