Título: Na histórica Canudos, na Bahia, 70% dos moradores recebem Bolsa Família
Autor: Menezes, Maiá
Fonte: O Globo, 03/05/2009, O País, p. 4

Cria-se um círculo vicioso e muita gente fica preguiçosa", admite prefeito

Maiá Menezes* Enviada especial

CANUDOS (BA). Na tela, a vida de uma Maria, como as milhares em Canudos, replica a sina das mulheres do agreste. No curtametragem de animação, exibido na última quarta-feira no II Cine Fest Brasil-Canudos, na praça principal da cidade, a personagem vê a vida de agruras passar, enquanto mantém a rotina massacrante de trabalho na roça, marcada pela seca. É a vida da personagem e do público: herdeiros de sobreviventes da sangrenta guerra que se sucedeu à insurreição de Antonio Conselheiro, os 15.229 habitantes da cidade enfrentam o drama da falta de perspectiva, da miséria.

Emblema da resistência no fim do século 19, Canudos hoje é dependente do Bolsa Família: 70% de seus moradores recebem o benefício. É a única renda para a maioria dos sucessores de Conselheiro, o beato-herói que inflamou a população do então vilarejo de Bello Monte, em 1893, contra impostos e regras da República.

Nas mãos de mulheres como a Maria do filme de Márcio Ramos, o Bolsa Família sustenta a economia da cidade.

Quem conta é uma Maria real, moradora da nova Canudos ¿ a primeira foi devastada pela guerra (1896-1897) e parte da segunda, inundada pela construção do açude, há 40 anos.

¿ Eu teria morrido sem o Bolsa Família. Vivo pedindo dinheiro na rua. Não tenho onde achar trabalho ¿ diz Maria Azevedo de Jesus, de 45 anos, oito filhos e três netos sustentados pelos R$ 204 que ela e a filha mais velha, Fabiana, de 22 anos, recebem do governo federal.

Mãe mantém filhos na escola para não perder benefício Analfabeta, dividindo com os filhos a casa de três cômodos no bairro do Aeroporto, uma pequena favela na periferia da cidade, Maria só mantém os filhos na escola por causa do Bolsa Família.

Na pequena comunidade, todos recebem o benefício.

¿ Todos falam que eu tinha que botar os meninos para trabalhar.

Mas cortam se eles saírem da escola ¿ diz Maria.

De frente para os escombros da História ¿ a cidade submersa, visível pela última vez há dois anos ¿, Helena Maria de Freitas, de 36 anos, desconhece os detalhes do passado de sua terra. Estudou apenas até a 4asérie e hoje se concentra na sobrevivência ¿ garantida pelo Bolsa Família e pelo tear eventual de redes de pescadores (que lhe rendem não mais do que R$ 4 semanais).

O prefeito Arcênio Almeida Gonçalves Neto (PRB) é direto ao diagnosticar o impacto do Bolsa Família na cidade: ¿ Se não fosse o Bolsa Família, isso aqui seria uma miséria total. Mas o problema que vejo é que se cria um círculo vicioso: tem muita gente que fica preguiçosa.

Para arrumar quem queira fazer trabalhos domésticos, por exemplo, é complicado.

Dos cerca de 50 pedidos que recebe por dia, de contribuintes que enfrentam uma fila interminável na prefeitura, 90%, diz o prefeito, são de emprego. Os outros 10% dos eleitores apelam por cestas básicas e dinheiro para pequenas obras em casa. Entre funcionários temporários e permanentes, a prefeitura emprega 1.600 pessoas.

Além do desemprego, a seca e a falta de moradia são problemas graves. A situação de Maria Gomes, de 66 anos, é um atestado da crise crônica que assola Canudos. Balde cheio de bananas na cabeça, recém-colhidas de uma plantação que prospera graças ao projeto de irrigação implantado pelo governo federal há 20 anos, a sem-teto afirma que o clima é, às vezes, o vilão: ¿ Tem dado muito vento aqui. Às vezes, não sobra nada.

A prefeitura gastou de janeiro até agora R$ 200 mil com caminhõespipa, para abastecer a população.

O prefeito reclama que seu antecessor, Adailton Gama (PSDB), não decretou situação de emergência em novembro, quando a seca se agravou, o que garantiria ajuda federal.

Ele quer investimento em turismo e planeja engordar o orçamento de R$ 12 milhões anuais atraindo visitantes. Pretende atender ao apelo inscrito no portão de entrada do Parque Estadual de Canudos: ¿Não deixe essa história morrer¿.