Título: Um voto lapidar
Autor: Ribeiro, Marcelo
Fonte: O Globo, 19/05/2009, Opinião, p. 7

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal apreciou a constitucionalidade da Lei de Imprensa.

A missão não era fácil. De um lado, poderia parecer incoerente afirmar a inconstitucionalidade de uma lei em vigor há 41 anos e que foi aplicada pelo Judiciário nos mais de 20 anos de vigência da atual Constituição. Alguns sustentavam que os dispositivos da Lei de Imprensa que com o novo Texto Maior não se compatibilizavam já haviam sido, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, retirados da ordem jurídica. Era o caso dos artigos que estabeleciam limites na indenização devida pela empresa jornalística em caso de condenação por matéria ilícita publicada, o que estabelecia prazo reduzido para a propositura da ação, entre outros.

Havia, porém, os que proclamavam a impossibilidade de convivência da integralidade da lei com a Carta nascida de 1988. A ¿Constituição cidadã¿ forjada para servir de impulso à concreção de um Brasil mais justo e igualitário, onde a liberdade e o direito fossem os fundamentos do país, não admitiria uma lei restritiva, como seria a em questão.

O STF considerou que a Lei de Imprensa, em sua integralidade, era incompatível com a Constituição.

Tive a oportunidade de conhecer o voto do ministro Menezes Direito. Humanista convicto, com origem na advocacia, profissão que depende, essencialmente, da liberdade e da democracia, desde o julgamento da medida cautelar se posicionou pela incompatibilidade integral da Lei de Imprensa com o sistema constitucional. Não adotou, contudo, a tese da liberdade irrestrita e irresponsável da mídia.

Seu voto demonstra o delicado equilíbrio que se deve manter entre a liberdade de expressão e os direitos da pessoa, entre os quais avultam os relativos à honra, à intimidade e à imagem. Menezes Direito traça, com mestria, essa linha tênue que separa a liberdade de expressão da eventual agressão aos direitos das pessoas comuns.

Deixa claro que, na tensão dialética que surge entre tais direitos ¿ o da liberdade de expressão e os da personalidade ¿, deve-se procurar prestigiar o primeiro, mas não de tal modo que aniquile o segundo. Confira-se trecho do voto: ¿O que se tem concretamente é uma permanente tensão constitucional entre os direitos da personalidade e a liberdade de informação e de expressão, em que se encontra situada a liberdade de imprensa. É claro, e afirmei isso ao votar na medida cautelar, que quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição deve-se defender a liberdade.

O preço do silêncio para a saúde institucional dos povos é muito mais alto do que o preço da livre circulação das ideias.

(...) Dito de outro modo: os regimes totalitários convivem com o voto, nunca com a liberdade de expressão.¿ O ministro, contudo, adverte: ¿Tendo a ver de outro ângulo essa dificuldade. É que estou convencido cada dia com maior intensidade de que quanto mais forte se põe a instituição, mais frágil se torna. Por quê? Porque estimula a arrogância e enaltece o arbítrio e a sensação de permanente acerto. Isso me leva à compreensão de que só existe garantia de preservação institucional quando um sistema de pesos e contrapesos é posto num mesmo patamar de proteção, de tal modo que sejamos capazes de identificar limites. (...) Nenhuma instituição pode arrogar-se em deter o absoluto, a vedação inconsequente de encontrar o seu espaço de agir desrespeitando o espaço de agir das outras instituições.¿ A conclusão, todavia, é inequívoca: não se admite lei que venha com o intuito de coagir a liberdade de informação. Trata-se de um voto lapidar, onde a liberdade de imprensa é enaltecida, mas compatibilizada com a preservação da dignidade da pessoa humana.

MARCELO RIBEIRO é advogado e ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).