Título: Onde a Lei Maria da Penha ainda não chegou
Autor: Otavio, Chico
Fonte: O Globo, 07/06/2009, O País, p. 8

Legislação não tem mecanismo para evitar reincidência da violência contra a mulher que perdoar seu agressor

Chico Otavio

SÃO LUÍS. O que fazer com R., mãe pobre de 43 anos, perguntaram-se durante mais de um mês as responsáveis pela Casa Abrigo, destinada pelo Judiciário maranhense a mulheres vítimas de violência doméstica em São Luís. A história dela, mesmo para profissionais experientes, era um caso extremo. R. não estava ali por vontade própria. Fora levada à Casa depois que o Conselho Tutelar de seu bairro recebeu denúncia de que seu companheiro violentava sistematicamente quatro filhas - uma enteada e três biológicas. Apesar do perigo, a mulher não queria ficar. Insistia em voltar para casa. E pior: as assistentes sociais desconfiaram que, como já havia acontecido uma vez, ela poderia perdoar e aceitar de volta o agressor.

Apesar dos avanços em quase três anos de Lei Maria da Penha, com 150 mil processos abertos e 20 mil pedidos de proteção atendidos no enfrentamento da violência doméstica e familiar, pouco pode ser feito nos casos de reincidência favorecida pelo perdão ao agressor, como o de R., em que a mulher agredida volta ao cenário onde ocorria o relacionamento abusivo.

- A lei pode punir, condenar, mas não muda a cultura da sociedade. A tendência, em muitos casos motivada por questões afetivas ou econômicas, é repetir o ciclo perverso da violência - lamenta a juíza Andréa Pachá, integrante do Conselho Nacional de Justiça.

Vítima preferiu morar com mãe

Desde que R. chegou à Casa Abrigo com três das quatro filhas (de 12, 6 e 5 anos), encaminhada pela Justiça maranhense, as responsáveis pelo projeto insistiam em alugar uma casa para ela, fora de sua comunidade, para que pudesse reconstruir sua vida em local seguro. O projeto, inclusive, pagaria os primeiros meses de aluguel, como faz com outros casos graves. Outras possibilidades foram pensadas, mas a mulher não concordou e, na semana passada, pegou os seus pertences e foi morar com a mãe.

- Pelo menos, fica em outro bairro. Mas não é o que queríamos. Temos medo de que aconteça novamente, como infelizmente já testemunhamos aqui - conta a pedagoga Lucileide Ribeiro Dias, coordenadora do projeto.

Cerca de 700 vítimas da violência já passaram pela Casa Abrigo desde a sua fundação, em 1999. Dependendo do caso, algumas ficam até 90 dias, com os filhos, sob a permanente proteção de dois PMs. A casa já mudou várias vezes de endereço. Isso ocorre quando um agressor o descobre.

- Infelizmente, ao sair, 70% voltam para a companhia do agressor - diz Lucileide.

Dona de casa, R. tem cinco filhos (as quatro mulheres e um homem). Há 18 anos, conheceu Z., pedreiro do mesmo bairro da periferia de São Luís "que parecia ser pessoa boa". A mulher já tinha a filha mais velha, na época com 12 anos. Os três passaram a morar juntos. Logo depois, o casal teve o menino. Tudo ia bem, conta a mulher, até que seu companheiro "fez coisa que não era para fazer".

A menina começou a ficar pálida e enjoada. Ficara grávida. Quando a criança nasceu, Z. estava preso.

Após 5 anos de prisão, o perdão

Após passar cinco anos na cadeia, Z. procurou a companheira para dizer que mudara. Entrara, inclusive, para uma igreja evangélica. Queria voltar para a casa. Ela o aceitou.

- Isso é muito comum. Acontece aqui também. A mulher sempre acha que o companheiro mudou. Em alguns casos, mudou mesmo. Não volta a errar. Em outros, tudo se repete - afirma a delegada mineira Maria de Fátima Carlos Ferreira, titular da Delegacia de Proteção e Orientação à Família de Betim (Grande BH) e considerada uma das maiores especialistas do país no atendimento de casos de violência doméstica.

Além da esperança de que "ele vai mudar um dia", há outros motivos para o retorno do agressor, como a dependência financeira, problemas de autoestima e medo da solidão. Após o reencontro, o casal teve outras três filhas. Aos poucos, o pedreiro foi trocando a igreja pela bebida. Recentemente, começou a tratar as filhas, principalmente a de 12 anos, com uma atenção suspeita.

- Várias vezes, eu o peguei rodando o quarto das meninas - disse a mãe.

Como da vez anterior, não coube a R. a iniciativa de denunciar o caso. Vizinhos, também desconfiados, resolveram procurar o Conselho Tutelar. O pedreiro chegou a ser preso pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, mas foi solto um dia depois por falta de provas - os exames, com os resultados positivos para as três meninas, só ficaram prontos depois que o agressor havia fugido.

- Não quero mais que ele volte a morar comigo - prometeu a mulher, diante do olhar cético das assistentes.

A promotora carioca Lúcia Iloizio Barros Bastos, do 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Rio de Janeiro, considera comum a retomada do relacionamento mesmo quando já existe uma ação penal instaurada contra o agressor:

- Aquela que deveria trazer mais subsídios à ação acaba, no final, amparando o próprio autor do fato.

O pedreiro desapareceu deixando quatro meninas violentadas. O Ministério Público, agora, fundamenta com os exames o pedido de prisão do agressor. Para a delegada mineira, isso não é suficiente. Dependendo das circunstâncias, a mãe também deveria ser responsabilizada pela omissão. Mas, nisso, a comunidade que lida com a violência doméstica se divide. Há uma corrente que considera a questão mais complexa, principalmente pelos laços afetivos que ela envolve.

- A mulher tem, de fato, responsabilidade. Mas precisa é de ajuda. Para essa mulher, poder enxergar a gravidade da violência é muitas vezes bem difícil. Pode significar perder tudo o que ela tem, como ligações de afeto e proteção. Sentimentos contraditórios na mesma pessoa. Ela precisa ser escutada - diz a psicóloga carioca Paula Mancini, coordenadora do Núcleo de Atenção à Violência (NAV), ONG que atende casos de violência doméstica.