Título: A crise fica
Autor: Noblat, Ricardo
Fonte: O Globo, 22/06/2009, O Globo, p. 2

Mais um show de hipocrisia em cartaz. Quem é culpado pela crise que abala o Senado? José Sarney (PMDB-AP), presidente do Senado pela terceira vez de 1995 para cá, nega que a culpa seja dele. ¿A crise não é minha, é do Senado¿, proclamou no terceiro pronunciamento que foi obrigado a fazer para reafirmar sua inocência. Simplesmente patético.

Não fui picado pela mosca azul para disputar o governo da Bahia, mas pelo besouro azul¿ ¿ Ministro Geddel Vieira Lima

De sua parte, assustada com o conteúdo ainda desconhecido dos 658 decretos secretos, a maioria dos senadores preferiu dar razão a Sarney. Lula, por sua vez, resolveu se meter na história para tentar salvar o aliado. E aí cometeu uma de suas mais célebres e tristes frases: ¿O senador tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum¿. Reivindicou para Sarney uma condição que aspira para si.

Ao ser alvo de ataques, o locatório de cargo poderoso costuma se defender de duas formas nada críveis: ou diz que querem atingir a instituição que ele representa ou transfere para a instituição a responsabilidade por seus próprios erros. No auge do escândalo do mensalão, Lula pediu que poupassem a Presidência da República ¿ como se ele e ela fossem uma coisa só. Sarney faz o inverso: imagina se desvincular da crise atribuindo-a ao Senado.

Começa a encontrar crescente resistência o discurso que tenta confundir o ameaçado de perder o poder com a instituição que ele preside. Instituições como a Presidência da República e o Congresso são permanentes. Passageiros são os que respondem por elas. Não se poder dizer o mesmo do discurso que atribui à instituição atos ilegítimos engendrados por seus ocupantes. Esse ainda confunde muita gente parva.

A coletivização da responsabilidade é o melhor atalho para se garantir a impunidade. Lula chamou o mensalão de caixa 2. Disse que o PT procedera como os demais partidos que usavam dinheiro sujo para pagar despesas de campanhas. Caixa 2 seria um crime menor. Com a vantagem de livrar o governo da suspeita de que subornara parlamentares dispostos a votarem como ele mandava. A Justiça aceitou a denúncia do mensalão.

A preocupação com a ética é algo que ainda não fincou raízes profundas entre nós. O Congresso cheira mal desde que voltou a funcionar para valer com o fim da ditadura militar de 21 anos inaugurada em abril de 1964. Como o primeiro presidente civil depois de cinco presidentes generais, Sarney inchou os quadros do governo com cerca de 100 mil novos funcionários. Liberou geral. O Congresso se antecipara à farra.

Em dezembro de 1984, Moacir Dalla, presidente do Senado, admitiu ali sem concurso 1.400 pessoas ¿ entre elas a filha do próprio Sarney, Roseana. Cinco anos depois, descobriu-se que 197 dos 495 deputados e 22 dos 70 senadores empregavam em seus gabinetes um total de 325 parentes. Presidente do Senado com duas residências ao mesmo tempo? Velharia. Em 1987, Humberto Lucena (PMDB-PB) dispunha da casa de presidente e de um apartamento funcional.

¿Querem colocar o Legislativo numa posição difícil¿, bradou não na semana passada, mas em 1989, o senador Pompeu de Souza (PSDB-DF), que havia contratado como assessores um filho, um genro e uma nora. Na mesma época, o Senado pagava o salário de quatro filhos de Jarbas Passarinho (PA), o líder do PDS. Ao que se sabe até aqui, como senador, Sarney empregou 10 parentes e afilhados.

Há como se identificar os culpados pela crise do Senado. Basta saber quem aprovou os decretos secretos, quem os escondeu e quem se beneficiou deles. Puna-se quem merecer ser punido. Há também como se moralizar o Senado. Contrate-se uma auditoria externa para rever contratos. Dispensem servidores não estáveis. Reduza-se o número de benefícios concedidos aos que restarem e aos senadores. Divulguem-se salários e atos na internet, se possível em tempo real.

Sarney terá coragem, autoridade e apoio dos seus pares para liderar tal empreitada? Nem pensar! Esqueça.