Título: Emendas em MPs abrem porta para negócios
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 21/06/2009, O País, p. 10

Mudanças favorecem financiadores de campanhas; atuação de Eduardo Cunha revolta alguns colegas

Da tribuna da Câmara, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) vislumbrou a fila que se formava embaixo, no plenário, atrás do deputado Fernando Coruja (PPS-SC).

-- Aqui dentro é uma surpresa a cada instante - protestou Coruja, ao microfone. -- O Brasil precisa é de mais licitação, de mais transparência. Quanto mais tempo se passa, menor é a transparência e maior é a roubalheira!

Cunha ajeitou os grandes óculos de aro escuro e passou os dedos pela calva profunda. Acabara de apresentar suas emendas a uma medida provisória que muda o mapa dos negócios no mercado de energia elétrica nos próximos três anos.

A Eletrobrás planeja investir R$30 bilhões nesse período - o equivalente a duas vezes e meia o custo anual do programa federal Bolsa Família. E, por iniciativa de Cunha, a estatal poderá comprar qualquer coisa sem concorrência pública - em situação análoga à da Petrobras e privilegiada no universo das empresas públicas.

Com o poder de relator da medida provisória, trocou a proposta do governo por um projeto de lei muito mais abrangente e bem menos transparente.

Isso tem acontecido com frequência nas votações, principalmente na Câmara. É um dos sintomas de que o governo Lula, em contagem regressiva, perdeu o controle das negociações no Legislativo.

De olho na eleição de 2010, o bloco governista na Câmara, capitaneado por PT e PMDB, aglutina-se cada vez mais em torno de interesses imediatos das respectivas clientelas. Transformaram o plenário em centro de negociações inusuais e até surpreendentes.

Em 5 MPs, conta extra de R$ 22 bi

Cada lei levada pelo governo a votação nas últimas 25 semanas resultou numa bilionária conta extra para o Tesouro.

Exemplo: cinco medidas provisórias chegaram à Câmara com estimativa de R$62 bilhões em gastos, subsídios e renúncias fiscais nos próximos 42 meses nas áreas de energia, construção civil, meio ambiente e funcionalismo. Saíram dali aprovadas ao custo de R$84 bilhões. A diferença (R$22 bilhões) equivale a 23 meses de custeio do programa Bolsa Família.

A principal beneficiária tem sido a clientela político-partidária com habitual e relevante presença em eleições. Ou seja, financiadores de campanhas (empreiteiras, bancos, seguradoras, empresas de energia, imobiliárias, indústrias ligadas à cana, soja e agropecuária) e agentes com capacidade de mobilização eleitoral (prefeitos e parte do funcionalismo com organização sindical atuante).

A maioria dessas empreitadas legislativas tem sido liderada pelo PMDB, com o PT no papel de aliado estratégico e PP e PTB em linha auxiliar.

Maior partido político, o PMDB se move como uma federação de grupos regionais. Os líderes atuam para converter cada voto no Congresso, em plenário e nas comissões, em moeda eleitoral. O objetivo é ampliar suas frações na bancada federal (atualmente são 94 deputados federais e 20 senadores) e nos estados (no conjunto, detêm oito governos estaduais, 1.308 prefeituras e 8.308 vereadores).

Em Brasília, caciques pemedebistas partilham interesses em torno de diretorias de estatais, como Eletrobrás, Petrobras e Correios, e de orçamentos de seis ministérios. Somados, esses orçamentos ministeriais representam gastos de R$151 bilhões neste ano - ou o custo do Bolsa Família por 12 anos.

Com aval do governo e do PT, o PMDB passou a concentrar poder sobre a produção legislativa na Câmara - com foco nas relatorias de projetos com repercussão econômica. O deputado Cunha, por exemplo, especializou-se em negócios do setor de energia: o partido controla o ministério e, ele, a comissão permanente da Câmara. Juntos, influem em negócios da Petrobras e da Eletrobrás.

Era esse o pano de fundo quando o deputado Coruja interpelou Cunha no plenário:

- O artigo que V. Excelência incluiu traz a possibilidade da contratação de bens e serviços pela Eletrobrás e suas controladas por licitação simplificada, em vez de normal. Simplificar significa fazer, por exemplo, três cartas-convites.

Acrescentou:

- Ora, o que acontece na Petrobras é um absurdo! As denúncias da roubalheira que há na Petrobras, nessa diretoria internacional (da cota pemedebista), são muitas. A Eletrobrás envolve muitos recursos, e permitir licitação simplificada é muito arriscado.

Sob os óculos, o rosto tensionado e rubro denunciava a aversão de Cunha pelo confronto público. Ele prefere a esgrima nos bastidores.

Economista, aprendeu a decodificar o poder pelas lentes de Paulo César Farias, o PC Farias - falecido "caixa" do ex-presidente Fernando Collor no fim do anos 80, início dos 90 --, para quem política e negócios sempre foram sinônimos. Deve ao ex-tesoureiro presidencial seu primeiro cargo público relevante, aos 32 anos de idade, no comando da antiga estatal de telecomunicações fluminense (Telerj), em 1991.

A fila no plenário avançou e Miro Teixeira (PDT-RJ) foi ao microfone com mordacidade:

- Há muita coisa do passado que lamentavelmente se está repetindo.

- É inconstitucional -- gritava José Carlos Aleluia (DEM-BA). - Imoral -- completava Chico Alencar (PSOL-RJ). Fernando Gabeira (PV-RJ) arrematou:

- Não estou pedindo que o relator (Cunha) saia daqui algemado, mas esse processo é ruim para o país, perigoso, partindo de onde partiu.

Por ironia da história, o antigo companheiro de PC Farias viu-se confrontado, também, pelo ex-líder do governo Collor no Congresso Humberto Souto (PPS-MG):

- É a desmoralização. É a instituição da propina. O PMDB nomeou a diretoria internacional da Petrobras! Imaginem: porque é que um partido tem de indicar um diretor de assuntos internacionais da Petrobras? E o que fazemos? Vamos dizer à Eletrobrás que não precisará fazer mais concorrência pública!

Cunha reagiu quando Ivan Valente (PSOL-SP) o acusou de "contrabandear" interesses privados em relatórios de leis propostas pelo governo:

- Pode-se não concordar com o mérito, é direito de cada parlamentar, mas "contrabando" não fiz e não faria. Fiz a pedido do governo.

No último 30 de maio, seu projeto virou lei pela caneta do presidente Lula.

O caso de Cunha é emblemático das peculiaridades operacionais do PMDB, mas não é único. As votações, sobretudo na Câmara, foram transformadas em sessões de negócios, onde um projeto de lei pode ter cinco versões em três horas para abrigar benefícios a setores específicos.

Já existem casos de vício de recorrência: no último trimestre, o deputado Sandro Mabel (PP-GO) apresentou várias vezes as mesmas 12 emendas. Fabricante de biscoitos, Mabel quer isenção total de impostos para quem produz armas - de cassetetes a torpedos.