Título: Direito da USP paga dívida histórica a Silva Telles
Autor: Aggege, Soraya; Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 30/06/2009, O País, p. 8

Jurista vira professor emérito dois dias antes de sua morte; há 24 anos, honraria foi negada por "motivos políticos"

Soraya Aggege e Tatiana Farah

SÃO PAULO E BRASÍLIA. A Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, resgatou uma dívida histórica que teve, durante 24 anos, com o jurista Goffredo da Silva Telles Júnior, que morreu no último sábado, aos 94 anos. Dois dias antes da sua morte, ele recebeu a notícia de que, por unanimidade, a congregação de 80 notáveis e alunos da faculdade lhe concedeu o título de professor emérito da Faculdade de Direito.

Silva Telles já tinha o título de professor emérito da USP, mas a mesma honraria da Faculdade de Direito onde ele lecionou por 45 anos, lhe foi negada quando se aposentou, em 1985, por causa de dois votos contrários.

- "Nossa, eu pensei que nunca fosse receber esse título. Eu estou muito feliz", foi o que ele me disse quando dei a notícia a ele, na quinta-feira. Felizmente, houve esse tempo. Sabe, era uma coisa esdrúxula, que ele nunca compreendeu bem. A faculdade era como a casa dele, mesmo depois de aposentado. Ele tinha o título maior, de toda a universidade, mas não o da casa que ele tanto amava, a Faculdade de Direito - contou ontem a viúva de Silva Telles, a advogada Maria Eugênia Raposa da Silva Telles.

Defesa da democracia e do estado de direito

O título não foi concedido por "questões políticas", segundo o atual diretor da faculdade, o jurista João Grandino Rodas.

- A faculdade tinha um débito com ele. Na década de 80, seu nome perdeu a votação por questões políticas, embora Goffredo merecesse o título. Em razão disso, quem concedeu o título foi a própria USP, um título de professor emérito de toda a universidade - Rodas.

O jurista Fábio Konder Comparato, que foi aluno de Silva Telles, além de amigo, disse que a "questão política" que impediu a titulação partiu de duas pessoas que, na época, faziam "uma resistência rancorosa" ao professor, por causa da atuação cívica que ele sempre teve na defesa da democracia:

- Desde o início do governo militar, ele se manifestou contrário publicamente. Nem todos concordavam. Ele era muito firme, mas de uma doçura extrema. Nunca pronunciava o nome das pessoas com quem tivesse brigado. E é melhor manter mesmo esses nomes no desconhecimento. O importante é que ele soube que obteve o título que tanto queria antes de morrer.

Além das aulas e dos livros que deixou, a história de Silva Telles percorre momentos políticos importantes do Brasil. Foi soldado constitucionalista de São Paulo, em 1932, e deputado constituinte em 1946. Em 1975, durante a ditadura militar, escreveu e leu publicamente a "Carta aos Brasileiros", em que defendia a democracia e o estado de direito.

Em 2002, decidiu apoiar a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas em 2007, Silva Telles foi um dos críticos do escândalo do mensalão. Em seu velório, no sábado, o professor Sérgio Resende de Barros leu a saudação aos calouros que Silva Telles leu em 2007, na sua velha faculdade: "O Direito é a disciplina da convivência humana, é a ordenação da disciplina dessa convivência. Vocês sabem disso. Portanto, meus amigos, não é de estranhar que, em épocas corruptas, de mensalões, sanguessugas etc., os setores normais da população vivam a clamar por ética". E concluiu: "Toda corrupção constitui atentado ao respeito pelo próximo".

Em Brasília, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e entidades jurídicas lamentaram ontem a morte de Silva Telles. Em nota, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, afirmou que, para Silva Telles, "Justiça era sinônimo de independência e verdade, democracia só podia ser compreendida à luz da plena liberdade de expressão e pensamento, ética foi sempre a melhor escolha, qualquer que fosse a circunstância. Para além das fronteiras do mundo jurídico, fica a todos os brasileiros, como maior legado, o exemplo indelével de honradez, descortino e coragem cidadã do renomado mestre".

O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mattos, disse que Silva Telles é um exemplo a ser seguido pelos juristas do país:

- Com a morte do professor Goffredo da Silva Telles o Brasil perde, além de um grande jurista, filósofo e escritor, um exemplo de cidadão. O autor da "Carta aos Brasileiros", um brado contra a ditadura é exemplo para ser lembrado sempre por todos os brasileiros e principalmente por nós, operadores do Direito.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, disse que a "Carta aos Brasileiros", lida por Silva Telles no pátio da Faculdade de Direito da USP, "encarnou, naquele momento histórico, a consciência crítica do Brasil":

- Foi um cidadão no sentido pleno da palavra. Como poucos, soube colocar a serviço do bem comum os seus conhecimentos, formando gerações de profissionais do Direito.

COLABOROU: Catarina Alencastro