Título: Crise não mudou as perspectivas para o Brasil
Autor: Cristina, Léa; Alves, Cristina
Fonte: O Globo, 28/06/2009, Economia, p. 30

Economista diz que PIB fechará no negativo este ano, mas deve se recuperar em 2010, sem risco para inflação

ENTREVISTA Dionísio Dias Carneiro

Em meados do ano que vem, os brasileiros terão seus empregos de volta.

E, ao fim de 2010, o país terá crescido 3%, 3,5% com a inflação na meta, calcula o economista Dionísio Dias Carneiro, ex-professor da PUC e diretor da Galanto Consultoria. Para ele, a crise não mudou as perspectivas econômicas do Brasil. Estudioso que mantém estreita relação com os tucanos da Casa das Garças, instituto que também dirige, Dionísio avalia que, apesar de entraves ideológicos, o presidente Lula tem se saído bem na condução da crise. Diz que o presidente age por instinto de preservação e acrescenta que ¿felizmente, a sobrevivência dele está associada a coisas que, do ponto de vista econômico, fazem sentido¿.

Léa Cristina, Cristina Alves e Gustavo Villela

O GLOBO: Afinal, saímos do fundo do poço? DIONÍSIO CARNEIRO: Acho que no caso da indústria, sim.

No do PIB (Produto Interno Bruto, conjunto de bens e serviços produzidos no país), não. O impacto foi muito em cima da produção industrial e, olhandose os gráficos desse movimento, não se consegue distinguir os diferentes países: China, Brasil, Estados Unidos, Rússia, Alemanha...

Os gráficos são todos iguais. Diante dessa forte queda, em torno de 30% de setembro até janeiro, uma série de providências foi tomada por vários governos. Mas o crédito para movimentação de mercadorias voltou. Então, o auge da queda da indústria passou, praticamente no mundo inteiro.

Se o fundo do poço não passou para o PIB, o que vai pesar neste caso, já que os serviços, responsáveis pela maior parte do PIB, não foram mal como a indústria? DIONÍSIO: Uma parte dos outros setores, como o de serviços, depende da indústria, mas com defasagem. A resposta é mais lenta. Serviços de manutenção, por exemplo: a indústria está operando a um nível mais baixo, mas o sujeito que presta esse serviço para ela não demite naquele momento, não desmonta sua empresa de manutenção imediatamente.

Assim, comércio, serviços e transportes ainda serão atingidos.

Por isso, o nível do PIB não vai se recuperar agora.

Fechará negativo este ano? DIONÍSIO: Isso. Vamos fechar 2009 com PIB negativo.

Mas o PIB do segundo trimestre não será maior do que o do primeiro? DIONÍSIO: A taxa de crescimento do segundo trimestre vai ser um pouco melhor que a do primeiro. Agora, não adianta você dizer para a pessoa que o PIB estava caindo a 3% e agora cai a 2%, se ela continua desempregada.

O que dá o emprego, o nível do consumo, a satisfação, é o nível do PIB, não a taxa.

l Quando as pessoas devem reconquistar seus empregos? DIONÍSIO: Ano que vem. Meados de 2010, no caso do Brasil.

No mundo, meados de 2011.

Por que sairemos da crise antes dos outros? DIONÍSIO: O Brasil estava com medidas em andamento. Elas não tinham nada a ver com a crise, mas serviram de colchão.

O crédito se recuperava. A taxa de juros estava caindo. Um importante setor da economia, o imobiliário, vinha se expandindo antes da recessão ¿ uma recuperação que não se monta de repente, num setor que dá motivação para as famílias se endividarem. Havia um processo de investimento de empresas que estava de vento em popa. O país estava com o lado externo da economia mais sólido, déficit em balança de pagamento pequeno.

Inflação menor e em queda, reservas seguras ¿ e, portanto, sem pânico cambial, sem ter que ficar pensando em para onde vai o dólar. Longe de cenários explosivos. Há espaço para aumentar o endividamento, em contraste visível com os casos americano, inglês, japonês...

As perspectivas brasileiras não foram mudadas pela crise.

Esse colchão inibe um clima de crise? DIONÍSIO: Claro. No Brasil, havia aumento de bem-estar nas classes mais baixas, antes da recessão, que estava ocorrendo independentemente do nível de atividade e do que ocorria lá fora.

Havia medidas deliberadas de distribuição de renda. Vínhamos de um processo longo de saneamento de finanças públicas : então, o governo tinha espaço para fazer gasto social. Isso ajuda a minorar o sentimento de crise.

Hoje nossa situação é melhor que a de Índia, Rússia. Só não é melhor que a da China? DIONÍSIO: A Índia ainda não sentiu todos os efeitos da crise no balanço de pagamentos. Os industriais indianos estão sofrendo pois se expandiram para a Europa. A Rússia tem um mercado interno importante, como nós, mas tem forte dependência da Europa, em gás e petróleo.

Por isso, o país vai depender do que a Europa sofrer. Além disso, tem problemas de governança e insegurança na fronteira com o islamismo: é uma potência cercada por problemas geopolíticos por todos os lados. Nosso problema geopolítico é interno.

Não custa tanto.

O senhor concorda com os analistas que esperam nova crise nos países desenvolvidos em cinco ou seis anos por causa dos gastos públicos que estão sendo feitos agora? DIONÍSIO: Lá fora, não há dúvida.

Mas varia de país para país.

É que foi rompido o equilíbrio intertemporal de governo, ou seja, a relação entre os déficits de hoje e os de amanhã. O mercado passa a desconfiar da capacidade de o país equilibrar sua dívida pública. Pensa: a combinação de gastos que faz com juros que paga para se endividar é viável a longo prazo? Ele vai ter que 1) desbastar essa dívida com inflação, 2) dar um calote ou 3) aumentar imposto de uma forma politicamente insuportável? É isso que os analistas pensam quando olham o endividamento e, desconfiando da solidez do país, veem uma crise.

E o Brasil? A arrecadação está em queda e as despesas crescem.

É um cenário explosivo? DIONÍSIO: Há dois aspectos importantes. O país tem espaço para fazer despesa anticíclica? Tem. E mais do que a maior parte dos países. O risco é fazer despesa que gere compromissos futuros, transformar gasto anticíclico compensatório em permanente. Desse ponto de vista, às vezes é melhor fazer um alívio temporário que vai e volta do que criar um programa novo que vai e não volta. A queda da arrecadação é cíclica, temos que enfrentá-la, isso dará alguns pontos de endividamento a mais, mantendo o mesmo tipo de despesa. Em outros tempos, ficaria mais preocupado. Mas o presidente Lula disse que prefere dar dinheiro ao pobre do que desonerar o empresário.

O senhor concorda? DIONÍSIO: O discurso dele traz a ideia da restrição do orçamento, o que é muito importante.

Ele (Lula) pode fazer uma coisa, mas não pode fazer todas.

Isso é uma evolução brutal. Antigamente, era como se ele pudesse fazer tudo. Agora, ele sabe que tem de escolher. É uma escolha política. A frase dele, de dar para o sujeito e o sujeito escolher onde gastar, é uma frase que poderia ser de Milton Friedman, um dos economistas da direita americana.

O déficit preocupa? DIONÍSIO: O que preocupa é a dinâmica de uma dívida.

Em 2002, em 2003, ela estava ficando explosiva e tinha uma composição mais perversa.

Toda a crise externa batia na desvalorização da moeda.

Hoje, tem a folga do câmbio, teve mudança nos prazos, nos vencimentos.

A composição da dívida hoje é saudável.

Você tem demanda privada indivi dual por dívida, tem o Tesouro.

Houve mudanças substanciais. Isso dá oportunidade até para ter um déficit maior. Eu, por conservadorismo, acho que 3% do PIB é um bom número para alerta. Mas isso não quer dizer que se tiver 5% está perdido. Se pagar custo baixo e tiver composição saudável da dívida, não tem problema. Hoje, se quiser, o Brasil emite dívida de 30 anos. É fantástico. Com 40 anos de vida profissional não pensei que fosse ver isso.

Como chegamos a isso? Foram ganhos da estabilização, com o Real, ou política de governo? DIONÍSIO: Nenhum mandato presidencial ou dois consegue fazer isso. Houve continuidade, mas a forma como Lula respondeu a situações adversas foi muito boa. Primeiro, foi a Carta ao Povo Brasileiro, depois a sustentação que ele deu ao (Antônio) Palocci. Quando houve questionamento, ele fez do presidente do Banco Central um ministro da moeda. É uma coisa que nem o Fernando Henrique pensou em fazer. As respostas a esta crise estão sendo boas. Nos fundamentos econômicos, independentemente do que ministros e assessores dele disserem, ele toma a decisão certa.

Como o senhor imagina que ele toma essas decisões? DIONÍSIO: Acho que é feeling político mesmo. Ele ouve muita gente e decide, até porque, cuida da sua sobrevivência. Então, ouve, mas pensa: quem vai ser eleito ou execrado sou eu. E não é por falta de ouvir conselho idiota. Se ele ouve dez idiotas e segue um que é razoável, é porque tem alguma coisa na cabeça.

É um animal político dos mais perfeitos que a gente viu na história brasileira. Nem Juscelino era tão intuitivo. Acho que só o Getúlio. Felizmente a sobrevivência dele está associada a coisas que, do ponto de vista econômico, fazem sentido.

Vamos sair mais rápido da crise? O senhor está otimista? DIONÍSIO: Mesmo com recuperação em ¿W¿ (tipo de recuperação em que a economia volta a cair depois de algum tempo de melhora), com outra onda negativa no ano que vem, o Brasil está mais protegido.

Isso significa que a perda total de PIB deve ser menor.

O quanto vamos crescer? DIONÍSIO: Acho que pode crescer 3% ou 3,5% no ano que vem e em 2011 também, mais perto de 4%, com a inflação dentro da meta. Exageros do governo podem custar uma inflação de 6%, mas não de 10%. Não vejo desorganização.

Pelas palavras do presidente, não acredito que ele vá dar um pau na máquina até o fim do mandato. E como quem faz o déficit é ele...

Por que o Brasil não pode crescer 10%? DIONÍSIO: Foram oportunidades perdidas. Esse governo foi muito lento em desmontar os gargalos de infraestrutura que podiam ter aumentado a competitividade.

Passou quatro, cinco anos discutindo privatização de estrada... Coisas que poderiam ter sido feitas e, com isso, reduzido o custo do transporte da soja que chega nos portos. O maior custo do governo Lula talvez tenha sido esse. Perdeu-se tempo em discussão ideológica, de privatização, de concessão.

Perdeu-se em taxa de investimento.

Ela foi a 18% e a gente estava comemorando, mas foi um período muito curto.