Título: Vizinhos estremecidos
Autor: Oliveira, Eliane
Fonte: O Globo, 03/07/2009, Economia, p. 21

Brasil pode adotar licenças não-automáticas para retaliar Argentina e estuda ir à OMC

Eliane Oliveira

Sem fazer alarde, o governo brasileiro estuda a aplicação de licenças não-automáticas às importações de diversos produtos argentinos, como químicos, fertilizantes, autopeças e até resina PET - usadas principalmente no engarrafamento de refrigerantes -, em resposta ao crescente protecionismo dos vizinhos. Assim como já vêm fazendo os argentinos desde o fim do ano passado, esse mecanismo tornará mais lento o desembaraço de mercadorias daquele país. A liberação pode ocorrer em até 60 dias.

A medida seria mais um capítulo na crescente deterioração do comércio entre Brasil e Argentina. No primeiro semestre, pela primeira vez em seis anos, o Brasil registrou déficit com o país vizinho. E empresas brasileiras queixam-se de dificuldades para operar no mercado argentino.

O governo brasileiro também avalia entrar com uma ação na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra a Argentina, justamente pela aplicação de licenças não-automáticas em importações. As autoridades do país vizinho estariam levando bem mais do que 60 dias para liberar os produtos brasileiros, o que fere as normas internacionais vigentes.

- Se exigirmos licenças não-automáticas, não estaremos descumprindo as regras, mas certamente os argentinos vão sentir na pele o que os empresários brasileiros estão passando - disse uma fonte que está trabalhando diretamente no assunto.

Irrita o governo não apenas o licenciamento mais demorado. Existe a convicção de que a Argentina continua dificultando o ingresso de calçados e móveis, embora os empresários brasileiros tenham concordado em reduzir suas exportações ao mercado argentino. Um agravante é que, enquanto a importação do Brasil cai e a balança comercial já registra déficit de US$48 milhões no primeiro semestre, a China e outros países asiáticos aumentam sua participação na pauta de importações argentinas.

Dados extraoficiais mostram que a parcela de calçados do Brasil nas compras argentinas caiu de 62,7% em 2007 para 55,8% em 2008, enquanto a da China cresceu de 27,9% para 29,4%. Têxteis brasileiros sofreram uma queda em sua participação de 41,1% para 34,3%, enquanto os chineses subiram de 17,1% para 18,1%.

Qualquer decisão a respeito da reação brasileira ao protecionismo argentino depende de uma reunião que acontecerá em Brasília, no dia 14, entre autoridades dos dois países. A partir de então, o tema voltará à pauta da Câmara de Comércio Exterior (Camex) com força total. Nos bastidores, autoridades brasileiras lembram que as eleições no Congresso argentino já passaram. O Brasil não se moveu até então para não enfraquecer ainda mais a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Hoje, o próprio Itamaraty já não apresenta tanta resistência.

Exportações para vizinho caíram 42%

Segundo empresários brasileiros, a estratégia argentina de facilitar a entrada de produtos chineses tem como contrapartida financiamentos de Pequim para equilibrar a deficitária conta externa do país. Segundo Ricardo Martins, diretor da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), a maior parte da queda de 42% nas vendas brasileiras à Argentina no primeiro semestre deveu-se à retração do mercado local. Mas cerca de 15 pontos percentuais das vendas perdidas decorrem das barreiras burocráticas:

- O governo brasileiro sempre fala em retaliar, mas age como um cavalheiro, fazendo concessões.

A crise vizinha também afeta empresas brasileiras com operações na Argentina. A Marcopolo reduziu de 2,5 mil para dois mil unidades sua previsão de produção de ônibus urbanos na Argentina este ano. Segundo o diretor de uma empresa de consultoria argentina que tem várias empresas brasileiras como clientes, "a sensação é de que está cada vez mais difícil fazer negócios aqui".

Segundo uma fonte técnica da Petrobras, a empresa deverá investir cerca de US$500 milhões na Argentina em 2009, mantendo, assim, o mesmo nível de investimentos dos últimos anos. Há algum tempo a Argentina não se mostra atrativa para a ampliação dos investimentos da estatal. Na área de distribuição, por exemplo, o governo argentino exerce o controle dos preços de venda dos combustíveis.

COLABORARAM: Ronaldo D"Ercole, Janaína Figueiredo e Ramona Ordoñez