Título: Democracia e crise
Autor: Mercadante , Aloizio
Fonte: O Globo, 05/07/2009, Opinião, p. 7

Octávio Mangabeira dizia que a democracia brasileira era uma ¿plantinha tenra¿, frágil e carente de cuidados.

Contudo, no contexto da grave crise mundial, mesmo as mais robustas árvores democráticas estão expostas a riscos consideráveis.

Com efeito, crises econômicas, especialmente as severas e prolongadas, costumam fazer mal às democracias.

O mal-estar social causado pelo desemprego, a redução dos rendimentos e o aumento das desigualdades produz, normalmente, um ambiente político propício a toda sorte de aventuras autoritárias.

A crise de 1929, por exemplo, teve impactos negativos profundos em muitas democracias. O aumento exponencial do desemprego e a precarização das condições de vida da população atingiram níveis de verdadeira catástrofe social. Isso serviu como caldo de cultura para o fortalecimento de movimentos de caráter nacionalista, totalitário e belicista, como o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha.

Na crise de hoje, embora a deterioração do tecido social ainda esteja longe do acontecido em 1929, já começam a aparecer inquietantes sinais de protecionismo, xenofobia e autoritarismo. Na Europa, o velho discurso xenófobo e antiimigrantista ganha novo dinamismo, com a aprovação da ¿diretiva de retorno¿ e da lei italiana que obriga médicos a delatar imigrantes. Nos EUA, o Buy American Act reproduz, em menor escala, o espírito das tarifas Smoot-Hawley, que iniciaram, na década de 30, uma destrutiva espiral protecionista.

Na América Latina, a crise atinge a maioria das democracias da região no contrapé de um lento e inconcluso processo de consolidação.

Desse modo, ela tende a ressuscitar alguns vícios antidemocráticos ainda latentes em nosso continente, como o golpismo e o populismo, que é incapaz de construir democracias modernas sustentadas por instituições independentes.

O recente golpe de Estado ocorrido em Honduras é lembrete amargo da fragilidade de muitas democracias da região. Anacrônico e injustificável, esse golpe é uma afronta clara aos mais elementares princípios democráticos e torna Honduras passível de ser submetida às sanções inscritas no Artigo 19 da Carta Democrática Interamericana, o qual prevê a suspensão de país que quebrar a ordem democrática de todo o sistema da OEA. Em moção aprovada no Senado, proponho que essa cláusula democrática seja aplicada com urgência.

Mas as ameaças à democracia não se consubstanciam apenas em golpes de Estado. O populismo, ao criar uma relação direta entre o povo e os líderes e desprezar os aspectos ¿formais¿ da democracia, tende a fragilizar Legislativo, Judiciário e outras instituições democráticas, bem como os partidos políticos.

Em anos recentes, regimes populistas latino-americanos de diferentes matizes ideológicos vêm exibindo também um fenômeno autoritário que fragiliza a democracia na região. Trata-se da síndrome do prolongamento dos mandatos. Ubíqua e perigosa, tal síndrome colide com o princípio da alternância do poder, oxigênio de todo regime autenticamente democrático.

Com a crise, essas tentações autoritárias tendem a avultar-se, como forma de dar respostas rápidas, ainda que equivocadas, ao mal-estar social. Porém, há países que escapam dessas tentações. O Brasil é um deles. Lula, que tem 80% de aprovação popular, poderia ser presa fácil da síndrome do prolongamento dos mandatos, algo já acontecido no país. Preferiu, no entanto, o caminho correto da alternância no poder.

O Brasil entendeu que a construção de uma democracia moderna é tarefa árdua, que demanda compromissos de longo prazo com o fortalecimento das instituições, a inclusão socioeconômica, o desenvolvimento sustentado, a educação universal de qualidade e a independência do Legislativo e do Judiciário.

É uma estrada longa e difícil, mas é a única consistente.

Assim, o Brasil é atualmente um país capaz de resistir bem às crises e aos seus efeitos políticos negativos.

A combinação de economia sólida, políticas consistentes de distribuição de renda, presença marcante no cenário mundial e consolidação crescente das instituições democráticas nos diferencia em nosso entorno.

A metáfora de Mangabeira já parece imagem do passado.

Lula preferiu o caminho correto da alternância no poder

ALOIZIO MERCADANTE é senador (PT-SP).