Título: Pizzão de Lula
Autor: Bloch, Arnaldo
Fonte: O Globo, 19/07/2009, O País, p. 12

A página móvel

Em seu último ano de mandato, presidente se converte no grande pizzaiolo da nação, regula fatias de poder e só é crítico à crítica

Oito anos atrás, a expressão ¿Lulinha paz e amor¿ ganhou o país, designando a metamorfose sofrida por Luiz Inácio da Silva na trilha para seu primeiro êxito eleitoral. Para que ¿o medo vencesse a esperança¿ e os temores de Regina Duarte de um descontrole inflacionário à Sarney (isso é que é ironia...), Lula precisou mostrar que sabia vestir terno, talhar barba, enrolar menos a língua, falar claro, apertar a gravada e trocar a bravata por palavras conciliatórias. Para acalmar os que desconfiavam de quebras de contrato e rupturas institucionais, assinou uma Carta ao Povo Brasileiro que fez os banqueiros suspirarem aliviados e os encontros com empresários tomarem uma feição graciosa.

Depois de eleito, de seu púlpito debruçado sobre a Avenida Paulista, gritou: ¿Vou governar para todos os brasileiros¿. Naquela época ninguém imaginava que o Mensalão jogaria por terra a pretensa unidade moral que permeava as diversas correntes do PT, e ainda se acreditava que Lula ¿ apesar das transformações moldadas pelas técnicas do marketing eleitoral ¿ era um político de esquerda, que exigiria de todos esses brasileiros para os quais prometia governar, uma fatia de seus ganhos, de forma a promover um passo além no sonho da justiça distributiva.

Isso não ocorreu: sob sua batuta, o empresariado mais abastado e os banqueiros foram tratados como em salões de beleza. O tal quinhão não foi exigido, a classe média continuou sacrificada e as camadas menos favorecidas foram borrifadas com o megaspray do Bolsa Família, um plano que, para além de seu proveito imediato e do merecimento por parte de quem se beneficia, não pode ser comparado a qualquer ímpeto de uma real reforma social.

O mensalão, quando veio com cara de que a Era Lula encerravase ali, terminou por servir-lhe, paradoxalmente, para desfazer os últimos laços fortes que o uniam ao motor central de um petismo que almejava projetos longevos e planificados de poder. Meirelles veio para tranquilizar o mercado.

Dali em diante ficou mais fácil a Lula dizer que não era de esquerda. Que seu compromisso transcendia o pertencimento partidário. Que seu discurso poderia seguir, sem constrangimento, a bússola de sua intuição. Que suas coligações não precisavam mais estar em sintonia com nenhuma plataforma político-partidária.

A popularidade em terreno doméstico e a percepção externa cada vez mais nítida de que Lula representava um discurso novo, consciente e avançado o escoravam para cultivar seu estilo, suas contradições de ocasião (muitas calculadas). Suas boutades escandalosas (como a dos banqueiros brancos) ecoavam pelo planeta como aforismos geniais, transgressores.

O que quer que Lula diga pega bem, pois ele é ¿o cara¿ de Obama, ele é o mascote de todas as reuniões internacionais, ele é aquele que diz as verdades sem ameaçar os grandes impérios, irresponsabilidades responsáveis, dá-lhe Ahmadinejad, e vamos pro Conselho de Segurança da ONU!.

Assim vem crescendo a figura de um ¿Lula paz e amor¿ agigantado, radioativo, um ¿Lula paz e amor¿ de Itu, que não escolhe aliados, que não critica, só aprova, desde que a pessoa, o grupo ou o projeto em questão lhe aglutine votos e ajude a eleger seu sucessor. Um Lula que diz verdades incômodas: todos põem a mão na lama, oposição quando chega no poder muda de atitude mesmo. Sem um PT para fiscalizá-lo (nada muito além de choramingos queixosos) ele está livre para dar a sua versão do fazer político, eternizar lições sobre o esgarçamento do tecido, chega de hipocrisia! Ao chamar os senadores de pizzaiolos Lula não ofendeu ninguém. Era como se ele falasse a irmãos, parceiros de jogo. O subtexto seria: ¿Foi assim em governos anteriores, que com competência toldaram um sem-número de CPIs, só que eu, Lula confesso, digo na cara, não será nesta minha vida, nesta minha geração, neste Congresso, que se dará a renovação dos meios e dos fins, então vamos no trenzinho de Maquiavel que está muito bom assim, e tratemos de aprovar nossos projetos em vez de cozinhar questões que emperram o país. E saiam de baixo, índios, ecólatras, Ongs, deixem em paz nossos usos e costumes, senão o Congresso vai fechar, a Imprensa vai fechar, vai tudo fechar, é isso que vocês querem? Então, todos juntos vamos, pra frente Brasil, com Collor, Sarney, Renan, todas as oligarquias, que a soja ocupe a floresta, os rios se quebrem em barragens, o gado se estenda sobre reservas, os Eurpeus queimaram as suas, vamos fazer a salada boa e caminhar, 2010 vem aí, ninguém, nasceu ontem e o Brasil ainda é o País do Passado.¿