Título: Especialistas defendem legalização parcial e gradual das drogas
Autor: Passos, José Meirelles
Fonte: O Globo, 08/08/2009, O País, p. 14

Em debate no GLOBO, eles concordam quanto ao tratamento aos usuários, mas divergem sobre regulamentação imediata dos entorpecentes em países como o Brasil

Legalização das Drogas¿ era o tema do debate. Mas, logo no início, ambos os debatedores concordaram que, diante de uma questão tão polêmica, que tantos temores desperta na sociedade, seria mais viável buscar uma meta intermediária: a regulamentação (da venda de drogas). Ou seja: uma legalização parcial.

Alcançá-la seria um grande passo, a ser dado gradualmente.

Já a busca da legalização total seria um salto enorme e arriscado demais. Além disso, poderia obstruir um avanço que já começa a se tornar possível em alguns países.

Tanto Ethan Nadelmann, diretorexecutivo da Drug Policy Alliance ¿ entidade dos Estados Unidos que defende políticas alternativas e redução de danos relacionados ao abuso de entorpecentes ¿ quanto a psicanalista Maria Thereza Aquino, diretora do Núcleo de Estudos em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad/ Uerj) concordaram que esse seria o melhor caminho. Eles chegaram a duas conclusões bem claras no debate, na noite de quinta-feira, dentro da série ¿Encontros O GLOBO¿, realizado no auditório do jornal, com o colunista Arnaldo Bloch como mediador.

A primeira foi a de que, por mais que se faça, a guerra às drogas não poderá ser vencida.

Os EUA já gastaram meio trilhão de dólares nesse combate, com êxito mínimo. Elas continuam abundantes e baratas.

A segunda conclusão foi a de que a procura de drogas ilegais deve ser encarada como uma questão de mercado; e os dependentes delas, como doentes.

Em termos concretos, caberia ao Ministério da Saúde e aos assistentes sociais cuidar dos viciados. A polícia e o Ministério da Justiça se encarregariam dos traficantes. Uma medida essencial seria a de descriminalizar os usuários.

¿ Temos que encontrar maneiras de regulamentar as drogas, efetivamente. Proibi-las não resolve o problema. A proibição, no fundo, significa que o que está proibido está fora de controle, está em mãos dos criminosos ¿ enfatizou Nadelmann.

EUA mantêm 500 mil usuários atrás das grades Maria Thereza, por sua vez, deu um exemplo prático de como o controle pode ser eficaz, mencionando o trabalho feito pelo Nepad: ¿ Nossa experiência mostrou que a política de troca de seringas fez com que os dependentes usassem cada vez menos a cocaína injetável, pois havia também uma abordagem psicoterapêutica. Isso é uma evidência de como ações de redução de danos são importantes ¿ disse ela.

A psicanalista usou um segundo argumento, endossando a informação dada por Nadelmann de que os EUA desperdiçam milhões de dólares com a prisão de usuários de drogas (hoje há 500 mil atrás das grades por isso), em vez de tratá-los clinicamente: ¿ Regulamentando a produção e a venda vamos esvaziar as prisões, diminuir a corrupção e também o trabalho da polícia e dos juízes, que passariam a se ocupar de casos mais graves ¿ disse ela.

Houve, no entanto, divergências entre eles, ao longo da discussão. Nadelmann manifestou uma clara opção pela regulamentação o quanto antes.

Maria Thereza, porém, argumentou que a sociedade brasileira ainda não está preparada para dar esse passo.

¿ Regulamentação é a minha bandeira. Não estou aqui para dizer que a maconha é maravilhosa, e tampouco para dizer que o usuário está livre dos riscos da dependência. Estou aqui para dizer que a proibição, além de ser ineficaz, hipócrita e contraproducente, é cada vez mais um tremendo desrespeito aos direitos humanos, pois criminaliza milhões de pessoas que usam certas drogas e não outras ¿ justificou Nadelmann.

Maria Thereza rebateu: ¿ A tese da regulamentação ainda soa como uma proposta assustadora no caso do Brasil, onde se estimula demais o consumo de tudo. Se as drogas forem regulamentadas, legalizadas, dará a impressão de que não fazem mal e de que podemos usá-las sem problemas.

Temo que muitas pessoas confundam isso com uma permissão para usar drogas livremente, o que pode ser muito perigoso.

Nadelmann disse que regulamentar a produção e a venda da maconha, por exemplo, dificultaria o seu uso por menores (¿Hoje é mais fácil para uma criança comprar maconha do que bebida alcoólica nos EUA¿, lembrou). E isso também permitiria um maior controle sobre a composição da droga, além de gerar impostos suficientes para que políticas de redução de danos e prevenção fossem implementadas.

"Um oceano de drogas" Segundo ele, a alternativa mais eficaz seria adotar uma ¿estratégia de controle do vício¿, que seria financeiramente benéfica para todos. Nadelm a n n l e m b r o u que o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, decidiu semanas atrás analisar seriamente uma lei em discussão na assembleia legislativa daquele estado, depois que soube que a legalização e a taxação da maconha renderia a ele US$ 1,2 bilhão em impostos por ano.

Comedida, Maria Thereza retrucou dizendo que não consegue ¿olhar com leveza¿ a possibilidade de se vender drogas à vontade: ¿ Tudo bem que ninguém morre de maconha, a menos que um caminhão cheio de maconha passe por cima de uma pessoa. Mas ela mata muitos destinos. Um adolescente que passa duas, três horas por dia sob o efeito da maconha, certamente não terá o mesmo destino de um que tem as mesmas oportunidades, mas que não fuma maconha.

Nadelmann reagiu logo: ¿ O que mata o destino das pessoas é a prisão por porte de maconha. Isso mancha o sujeito com uma ficha criminal que certamente o estigmatizará para o resto da vida, e vai desestimulá-lo a ousar na vida.

Barack Obama já admitiu que fumou maconha e usou cocaína na juventude. Se tivesse sido preso por isso, será que teria tido coragem para se candidatar a um cargo público? Provavelmente não. E hoje não teríamos o nosso primeiro negro na Presidência.

No final, ambos os debatedores ressaltaram que o uso de drogas continuará existindo, e a única saída é adotar medidas que tornem menos daninhas as consequências desse mercado: ¿ Não temos outra saída a não ser encontrar novas maneiras de viver com essa realidade, assim como aprendemos a conviver com os automóveis e com os computadores ¿ sugeriu Nadelmann.

Maria Thereza emendou: ¿ Aldous Huxley dizia que no futuro todos usaríamos drogas. E hoje, de fato, todos usamos, sejam elas legais ou ilegais. Estamos num oceano de drogas, e temos que aprender a nadar, a dominá-las.