Título: Reflexão ligeira sobre Cristovam
Autor: Braga, Ugo
Fonte: Correio Braziliense, 08/04/2009, Política, p. 04

O Congresso Nacional transcende em valor à soma de seus membros. A corrupção deles nada tem a ver com o papel da instituição no funcionamento da República

Subiu o sábio e admirável professor Cristovam Buarque à tribuna senatorial para propor a feitura de um plebiscito. A população, conforme ele, seria consultada sobre o fechamento do Congresso Nacional. Eis um discurso chocante. Mas que ele logo avisa, não vai levar adiante. Pronunciou-o apenas à guisa de provocação, digamos assim. Como que para chamar os pares à reflexão. Não só eles. Também os servidores da Casa Alta, uma casta superior do serviço público. E até mesmo nós, a sorumbática ralé que assiste, espantada, ao roteiro de cinismo encenado na vida pública brasileira.

Levado compulsoriamente à reflexão pelo petardo do bom senador, vislumbrei uma primeira e ligeira opinião.

Acho que o Congresso não deveria ser fechado. Quando nada, temos nele o caso de um membro eleito que toma o microfone e proclama um rito para sua extinção. E no fim do mês ainda vai receber por isso! É a prova definitiva de que, até diante de uma asneira, o parlamento revela a pureza democrática de seu estado de espírito. Para o país, do ponto de vista institucional, não é algo que devamos descartar.

Também é relevante e inescapável a abissal ignorância da chusma a respeito do Congresso Nacional. Desse bolo, o Senado é a cereja. Dia desses, num almoço de domingo, ouvi respeitáveis senhores defenderem sua extinção.

¿ Para que duas Casas?, questionava uma cabeça branca. Ela mesma respondia, sem qualquer vestígio de dúvida no argumento.¿ Só para roubarem em dobro.

A conversa toda surgiu a reboque dos escândalos vários revelados desde que José Sarney elegeu-se presidente dos senadores. A lista é grande. Do celular da filha aos jatinhos fretados. É como se, de repente, ficássemos sabendo de uma baita festa para a qual não fomos convidados. A não ser, claro, na hora de pagar a conta.

Serventia, há¿ O Congresso Nacional, porém, transcende em valor à soma de seus membros. Quão seja, a corrupção deles nada tem a ver com o papel da instituição no funcionamento da República.

A começar da sua natureza. A divisão do poder do Estado em três instâncias complementares está relacionada ao conceito mais puro de justiça, firmado justamente para dar forma à liberdade conquistada a partir da ruína dos feudos despóticos. Em resumo, aqueles que fazem as regras da vida em sociedade, não podem julgar os conflitos; aqueles que os julgam, não podem fazer as normas; aqueles que zelam pela sua execução, nem as fazem, nem as julgam. Daí brotam os pesos e balanços a equilibrar os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo.

Esse espécie de teoria ótima está erguida até hoje sobre pilares construídos pelos iluministas franceses. Mas há outras projeções relevantes nessa construção. E, em momento de grave crise, é sempre bom dar uma olhada nos federalistas ¿ os pensadores que construíram o arcabouço institucional dos Estados Unidos antes mesmo da Revolução Francesa.

James Madison é um deles. Nos anos anteriores à promulgação da Constituição dos EUA, em 1787, ele liderou o intenso debate intelectual a respeito do futuro país. Preocupava-se sobretudo em criar instrumentos capazes de livrar a República da corrupção e da aristocracia (para o Brasil atual, podemos adaptar para oligarquia).

Madison era questionado seguidamente a respeito do predomínio de facções no Poder Legislativo. Elas se serviriam do Estado, em vez de atuarem em favor da sociedade como um todo. O pensador respondeu brilhantemente ao problema. Disse que, dada a multiplicidade de interesses, as facções acabariam vetando as políticas que beneficiassem apenas umas às outras. Pelo Congresso, passariam somente decisões com as quais todas as facções, ou seja, toda a sociedade, se sentissem contempladas.

A soma dos franceses com os americanos resulta numa certeza inescapável: sem o Congresso, estaremos entregues a um governante superpoderoso, à mercê de violência e de toda sorte de tiranetes. Já superamos tal fase da história.