Título: Setor público afrouxou o cinto, mesmo com a crise
Autor: Alvarez, Regina
Fonte: O Globo, 09/08/2009, O País, p. 3

Levantamento mostra que, em alguns órgãos, despesas tiveram aumento de mais de 400% no primeiro semestre

BRASÍLIA

Em tempos de crise aguda, enquanto as empresas do setor privado apertaram o cinto, cortando gastos de custeio e revendo seus orçamentos, o setor público comportou-se, em alguns casos, como se a crise não existisse. Um levantamento dos gastos dos três poderes com diárias, passagens e locomoção, material de consumo, serviços de terceiros, locação de mão de obra e serviços de consultoria, no primeiro semestre de 2009, mostra enorme disparidade na evolução dessas despesas entre os órgãos. Há aumentos que superam 400% em relação ao mesmo período de 2008.

A crise não impediu que, em alguns ministérios e em órgãos do Legislativo e do Judiciário, essas despesas ultrapassassem, com larga margem, os patamares do primeiro semestre de 2008, quando a economia estava em franca expansão e a arrecadação registrava recordes. O levantamento, feito com base em informações do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), indica que, no agregado, o Executivo elevou esses gastos em 17,7%, na comparação dos dois períodos ¿ mais de três vezes a inflação registrada de julho de 2008 a junho de 2009 (4,8%).

O que chama mais a atenção são os aumentos registrados em alguns órgãos, um indicador de como cada gestor se comportou na crise.

O Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, elevou as despesas com passagens e com locomoção em 318% no primeiro semestre de 2009, em relação ao mesmo período de 2008.

Essas despesas pularam de R$ 3,693 milhões para R$ 15,459 milhões. O ministério foi procurado sexta-feira para explicar os gastos, mas não respondeu. Recentemente, indagado sobre o aumento dos gastos com passagens e locomoção, o ministro Carlos Minc justificou as despesas afirmando que a atuação de seu ministério foi intensificada em 2009.

¿ Estamos fiscalizando três vezes mais do que antes, o que possibilitou a redução este ano de 45% da área desmatada no país ¿ disse.

Qualidade do gasto é o maior problema

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome aumentou em 406% os gastos com material de consumo, que passaram de R$ 95,6 mil para R$ 484 mil. Os gastos com serviços de terceiros ¿ pessoa física na Justiça do Distrito Federal e dos Territórios ¿ subiram 438%, passando de 27,6 mil para R$ 148,9 mil. No Ministério das Relações Exteriores, as despesas com material de consumo cresceram 119%. Somavam R$ 1,883 milhão no primeiro semestre de 2008 e pularam para R$ 4,134 milhões no mesmo período deste ano.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO destacam que, na crise, o setor público e o setor privado desempenham, de fato, papéis diferentes. Enquanto o setor privado se retrai naturalmente, cortando gastos e cancelando ou adiando investimentos, cabe ao setor público ampliar seu espaço na economia para evitar a recessão. E isso ocorre pelo aumento dos gastos públicos.

O problema que todos apontam é a qualidade do gasto que cresceu durante a crise.

¿ Não se pode querer que o governo tenha uma postura de iniciativa privada. A empresa olha para o seu umbigo, e isso não é negativo, mas o governo precisa ter uma visão de conjunto da sociedade ¿ diz o economista Julio Almeida, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e atual diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).

Almeida defende políticas anticíclicas e gastos sociais, mas frisa que certas despesas de custeio não podem seguir crescendo nas ¿franjas¿ dessas políticas.

¿ O setor público vai precisar segurar a rédea.

O governo fez uma porção de coisas muito boas, a política fiscal está num nível melhor que a política monetária. Mas não é qualquer gasto que deve ser feito neste momento ¿ diz.

Na visão do economista, está na hora de o governo voltar a reduzir suas despesas e evitar os gastos que não são importantes para reativar a economia ¿ no caso, as despesas com o custeio da máquina administrativa.

¿ Essas iniciativas se assanham em momentos como este. A cartilha (para combater a crise) inclui os pobres, os desempregados e os investimentos.

As viagens não entram ¿ ironiza.

Para o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, o governo teria que substituir o setor privado no papel de liderar os investimentos. Mas, segundo ele, o que aconteceu no auge da crise foi o oposto.

¿ Nos últimos cinco anos, os investimentos vinham crescendo mais do que o gasto corrente.

De novembro pra cá, houve uma inversão, e o gasto corrente passou na frente. Na hora em que deveria subir o peso do investimento, aconteceu o contrário. O governo deixou os órgãos aumentarem os gastos sem se preocupar com a qualidade desses gastos ¿ observa Velloso.

O economista considera que o comportamento gastador de alguns órgãos, mesmo sem impacto relevante no conjunto das contas públicas, é condenável, pois indica uma tendência de descuido com a expansão dos gastos correntes neste momento de crise.

A necessidade do exemplo na gestão do gasto público também é ressaltada pelo cientista político Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB).

¿ O governo perde a oportunidade de dar um tipo de demonstração simbólica. Mesmo despesas que não têm um peso tão grande no Orçamento têm um impacto simbólico ¿ disse, referindo-se aos aumentos elevados de gastos de custeio no auge da crise.