Título: Perdemos a capacidade de investir
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Fonte: O Globo, 16/08/2009, Economia, p. 31

Regime militar era "inflacionista e concentrador", mas país não reencontrou crescimento vigoroso, diz economista

Em 1969, o economista Edmar Bacha havia recém-concluído seu doutorado na Universidade de Yale (EUA) e morava no Chile, onde passou um ano "meditando se voltaria ou não para o Brasil" por causa da ditadura militar. Bacha participou da formulação dos dois principais programas de estabilização da economia brasileira: o frustrado Plano Cruzado, logo após a redemocratização, e o Plano Real, de 1994. Antes disso, ganhou notoriedade ao cunhar o termo "Belíndia" para se referir ao milagre econômico dos anos 1970, que proporcionava vigoroso crescimento, porém com enorme concentração de renda, fazendo do Brasil um misto de Bélgica com Índia. Hoje consultor sênior do Itaú BBA e co-diretor do Instituto de Estudos de Políticas Econômicas Casa das Garças, Bacha critica a "herança maldita" do regime militar brasileiro, que optou por um modelo "inflacionista, concentrador e ineficiente do ponto de vista econômico". Mas lembra que o Brasil de hoje ainda não encontrou a fórmula para crescer com o mesmo vigor de 40 anos atrás, fundamentalmente porque perdeu a capacidade de poupar e investir.

Luciana Rodrigues

Em 40 anos, qual foi o principal avanço da economia brasileira?

EDMAR BACHA: A grande mudança é a estabilidade. Em 1968, Milton Friedman (um dos mais influentes economistas do século XX, defensor da estabilidade dos preços e considerado o pai do monetarismo) veio ao Brasil e disse que nós tínhamos conseguido neutralizar os males da inflação por meio da correção monetária. Mal sabia ele que a gente estava apenas começando. À medida que a gente tomou o veneno da indexação, perdemos totalmente controle sobre o instrumento monetário. Então, quando vieram os choques do petróleo e depois a crise da dívida, em 1982, a inflação disparou. E aí veio a redemocratização e aquela série de planos frustrados até que a gente conseguiu, através do Plano Real, acabar com a inflação. Isso foi a grande virada. O país era extremamente tolerante com a inflação, que era vista, tanto pela esquerda como pela direita, como um elemento auxiliar do crescimento. E a indexação tinha uma perversidade, pois quem saía perdendo eram os assalariados e os pobres. O Millôr Fernandes tem uma frase memorável: "Cada dia sobrava mais mês no final do salário".

Se a estabilidade foi a maior conquista, em qual aspecto ficamos para trás?

BACHA: Havia o problema da estabilidade, de uma economia que crescia às custas da inflação e da piora na distribuição de renda, num contexto de regime militar. Mas crescia. E a gente não conseguiu ainda descobrir uma fórmula para crescer com vigor sem os atributos negativos daquele período. Resolvemos o problema da inflação. Estamos melhorando a distribuição de renda significativamente, porque desde a estabilidade o poder de compra dos salários se restabeleceu, depois isso foi complementado por programas sociais muito bem-sucedidos, o Bolsa Escola e depois o Bolsa Família. Mas não encontramos a fórmula para voltar a crescer com aquele vigor. E o nosso concorrente mais próximo na época, que tinha uma renda per capita mais ou menos similar, era a Coreia do Sul, que hoje deixou já de ser um país emergente, é quase desenvolvido.

O que a Coreia do Sul fez de diferente?

BACHA: Quando abateu-se sobre a Coreia do Sul a primeira crise do petróleo, em 1974, os coreanos mudaram de rumo, trataram de poupar e investir mais e começaram a enfatizar a busca do mercado externo, abandonando a substituição de importação como estratégia de crescimento. No Brasil, fizemos o contrário. Quando veio a primeira crise do petróleo, a nossa resposta, através do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), foi reafirmar o modelo de substituição de importações, o que acabou desembocando nessa loucura que foi a Lei da Informática. E documentadamente o período Geisel (do presidente Ernesto Geisel, de 1974 a 1979) foi de retrocesso, houve uma enorme queda da produtividade por causa dessa insistência em produzir cada vez mais produtos para os quais não estávamos capacitados. As respostas do regime militar às crises externas que ele enfrentou fizeram com que o Brasil perdesse potencial de crescimento, virasse uma economia hiperinflacionária e agravasse a concentração de renda.

Há outros exemplos de países que traçaram caminhos que poderíamos ter seguido?

BACHA: Quando você compara nosso governo militar com o do Chile, lá a abertura ao exterior e o controle da inflação foram feitos pelos militares. Nossos militares enfatizaram um regime inflacionista, concentrador de renda e crescentemente ineficiente do ponto de vista econômico. Isso sim foi uma herança maldita. E, com toda aquela confusão que foi a redemocratização brasileira, levamos dez anos para conseguir colocar a casa em ordem. Apesar do terror que foi, do ponto de vista humano, o regime do Pinochet (do General Augusto Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1981), houve muito pouco trauma, no aspecto econômico, na transição para a democracia.

Qual é a principal trava para que o Brasil volte a crescer com vigor?

BACHA: Por comparação com os países asiáticos, a resposta é simples: a gente poupa e investe muito pouco. A China é um caso inaudito, poupa e investe 50% do PIB (Produto Interno Bruto, conjunto de bens e serviços produzidos pelo país). Nós estamos poupando e investindo pouco mais do que 15% do PIB, era preciso que houvesse um esforço muito mais expressivo e, para isso, o fator fundamental era que o governo tivesse capacidade de investir. Essa foi outra característica que perdemos, a capacidade de investir. No fim da década de 60 e entrando na década de 70, o governo investia algo como 7% do PIB. E hoje investe pouco mais do que 1% do PIB. Isso ocorreu por causa da crise fiscal que esteve associada ao regime inflacionário, primeiro; a crise da dívida, depois; e a redemocratização, que por via da Constituição de 1988 colocou muita pressão sobre orçamento público para gastos correntes.

A necessidade de investimentos públicos ganhou nova ênfase com a atual crise internacional. O Brasil poderia investir mais em infraestrutura?

BACHA: O governo agora está anunciando o PAC, e aí constatamos duas coisas: primeiro é que falta dinheiro, e segundo é que, mesmo quando tem dinheiro, o governo não consegue fazer. O ideal é ter um governo que seja menos inchado e que possa exercer ação de fiscalização. Dito isso, há certas coisas em que o setor privado não tem condições de investir sozinho, como trem-bala ou linhas novas de metrô urbano. Então, é importante que o governo entre ou diretamente ou através de parcerias público-privadas, que aliás é algo que este governo prometeu mas não consegue entregar.

A metáfora da Belíndia ainda é válida para o Brasil?

BACHA: Somos ainda um país extremamente desigual. Mas já não somos o país com a maior desigualdade mundo. Três fatores explicam isso: a estabilidade, a retomada do crescimento, ainda que moderado, e os programas sociais, que hoje têm expressão e qualidade que nem se cogitava nos anos 70, quando o princípio era que o crescimento da economia eventualmente se refletiria nos salários. Esse tipo de atitude não mais existe. Hoje sabemos que um país como o Brasil tem recursos suficientes para fazer uma política redistributiva com impactos expressivos. E, desde que seja feita com condicionantes adequados, não precisa ser perpetuada, porque a próxima geração terá mais saúde, mais educação, e poderá andar com suas próprias pernas.