Título: Inflação e dívida externa, heranças superadas
Autor: Almeida, Cássia
Fonte: O Globo, 16/08/2009, Economia, p. 29

Reservas internacionais hoje superam US$200 bilhões e país mantém preços sob controle, subindo 4,5% ao ano

O Brasil, em junho deste ano, emprestou US$10 bilhões ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Quem diria, nos idos de 80, que algum dia isso aconteceria? Afinal, o país decretara moratória da dívida externa. Esse foi mais um capítulo da conquista emblemática dos últimos anos: com reservas internacionais superiores à dívida externa, o Brasil se tornou credor externo líquido em fevereiro de 2008. Deu-se adeus ao fantasma que assombrou sucessivos governos desde os anos 80 e que obrigou o Brasil a recorrer repetidas vezes ao FMI. Os clamores de ativistas de esquerda pintavam os muros das grandes metrópoles de "Moratória já" e "Fora FMI", até bem pouco tempo.

Sem alarde, a situação de credor foi alcançada num longo caminho de renegociações, troca de títulos e, recentemente, de grande acumulação de reservas internacionais, com o Banco Central comprando dólares que se espalhavam em abundância pelo mercado brasileiro, com o avanço das exportações. Inchava-se as reservas e impedia-se a queda exagerada do dólar.

Essa dívida começou a nascer e engordar em parte para financiar o crescimento de dois dígitos de 1969 a 1973 e que foi mantido em torno de 7% nos anos seguintes. Essa herança se une à inflação, que coexistiu com o mais amplo processo de indexação já visto no mundo.

A dívida externa chegou a US$124 bilhões em 1990. Um salto gigantesco diante dos míseros US$4,3 bilhões de 1969. E a inflação, que beirava os 20% há 40 anos, alcançou inacreditáveis 2.490% em 1993, véspera do Plano Real. A indexação garantia a receita do governo com os títulos públicos, dando condições de investimento ao Estado brasileiro. Mas, aos poucos, a correção monetária se espalhou por contratos, salários, aluguéis e todos os tipos de preços, tornando impossível controlar a inflação.

- Até um dos mais ortodoxos economistas, Milton Friedman, falava maravilhas da correção monetária. Esse ovo da serpente, plantado no período do milagre, deixou seus efeitos pelas próximas décadas - afirma Eustáquio Reis, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e um dos autores das "Estatísticas do século XX".

Juros altos nos afastam de economias desenvolvidas

O imposto inflacionário que corroia os salários acabou sendo pago pelos trabalhadores.

- Houve forte concentração de renda - diz Reis.

Os anos seguintes a 1980 foram para apagar incêndios, buscando estabilizar a moeda e acertar as contas com o resto do mundo, diante dos déficits na balança comercial, principalmente por causa do petróleo importado que abastecia 80% do consumo nacional. A cada crise em algum país endividado, as torneiras se fechavam para o Brasil. Foi assim com a moratória mexicana de 1982, que levou o Brasil junto. E lá ia o governo de pires na mão ao FMI.

A receita do Fundo era indigesta. Brecava-se o consumo interno para diminuir a oferta e baixar os preços e para ter excedente que pudesse ser exportado. Planos Cruzado, Verão, Bresser (do ministro Bresser Pereira) tentaram conter os preços via congelamento, que tinha eficiência fugaz. O Plano Cruzado, dos anos 80, fez aparecer a figura dos fiscais do Sarney e levou a população a comprar carne mais cara no mercado negro, enquanto os fiscais tentavam buscar o boi no pasto.

A estabilidade só veio para ficar com o Plano Real em 1994, que acabou de vez com a indexação ao criar um indexador dos indexadores, a URV, depois transformada na nova moeda, o real. Sustentado nos primeiros anos pela âncora cambial, o Plano Real mantinha o dólar perto de R$1, facilitando a importação. Mas, depois da crise asiática de 1997 e da moratória russa de 1998, o Brasil foi a bola da vez em 1999 e, sem crédito externo, viu-se obrigado a mudar seu regime para câmbio flutuante.

Hoje, há saldo na balança comercial, reservas superiores a US$200 bilhões, o que permitiu ao país sofrer menos com o colapso financeiro que atingiu o mundo no ano passado. E a inflação está em 4,5% ao ano.

- Só nos falta conseguir baixar mais juros, para nos aproximarmos das economias mais desenvolvidas - afirmou Roberto Olinto, coordenador de Contas Nacionais do IBGE.