Título: Muito além do jardim do Planalto
Autor:
Fonte: O Globo, 16/08/2009, O País, p. 10

Com base nos discursos de Lula, livro analisa sua empatia popular, apesar de excessos verbais e incoerências

LULA NO PALANQUE: presidente bateu todos os recordes de discursos e já falou o dobro de FH. O principal tema de Lula é a sua própria trajetória

O presidente Lula é um grande orador, um comunicador sem par na história recente do país, que usa sua própria história para se fazer entender de modo simples pela população, manejando os valores tradicionais da família, da ascensão pessoal e da conciliação. O talento de sua oratória e a ligação que cria com as pessoas simples são fatores que naturalmente turbinam a sua estratosférica popularidade.

O presidente Lula é um político que simplifica propositalmente, por cálculo eleitoral, a complexa missão que é governar o Brasil. Comete erros frequentes de história - do país e do mundo - demonstrando desconhecimento de fatos corriqueiros. Usa expressões chulas e imagens constrangedoras. Muitas vezes, faz blague da própria ignorância e despreza quem possui conhecimentos maiores do que os seus.

Qual dos dois perfis do presidente Lula é correto? Provavelmente, os dois. Ele é ao mesmo tempo o político a conseguir chegar mais próximo do "povão" que muitos brasileiros já presenciaram e, também, uma espécie de Chance Gardner, o personagem da obra-prima de Petter Sellers "Muito além do jardim", baseada no livro "Being there" - no qual o universo restrito a plantas e televisão do jardineiro Chance o faz se comunicar apenas por imagens (um pouco no estilo Paulo Coelho), que acabam vistas como grandes pensamentos e o levam à posição de conselheiro pessoal do presidente dos EUA.

Os dois Lulas emergem com clareza da monumental obra de pesquisa do jornalista Ali Kamel que está chegando às livrarias (Ed. Nova Fronteira, 671 páginas), o "Dicionário Lula - Um presidente exposto por suas próprias palavras". Nunca antes neste país um presidente teve a possibilidade de ser esquadrinhado não pelo que os outros dizem dele, e sim pelo que ele próprio diz dos outros e, com avassaladora frequência, de si mesmo - só o verbete "Lula" ocupa 25 páginas, uma autêntica autobiografia.

O trabalho a que Ali Kamel se propôs não era simples: Lula é o presidente que mais tempo do mandato passou em palanques e/ou púlpitos fazendo discursos: da posse até 31 de março de 2009, período compreendido pelo livro, foram 1.770 discursos, 52% a mais do que seu antecessor Fernando Henrique Cardoso em período semelhante - e FH não era propriamente um mudo.

Um discurso presidencial por dia útil, cinco discursos em menos de 24 horas

Lula, que não gosta de entrevistas mais complexas com jornalistas e evita se expor ao contraditório, fez um discurso a cada dia útil de governo, sendo que há casos em que chegou a pronunciar nada menos do que cinco discursos em 24 horas.

A pesquisa do livro foi ambiciosa: vasculhou, além dos discursos de improviso, todos os programas radiofônicos e entrevistas dadas em entradas ou saídas de eventos, as preferidas de Lula. (Os textos lidos apenas protocolarmente foram desprezados, certamente para tristeza do ministro Luiz Dulci, que os escreve e Lula rejeita. Ficaram apenas alguns emblemáticos, como o do mensalão ou um em que elogia a imprensa, sendo que no mesmo tema, quando fala de improviso, as palavras são sempre críticas à mídia).

Isso resultou num total de 1.554 textos (847 discursos, 503 entrevistas e 204 programas radiofônicos), que equivaleriam a 4.878 artigos diários em um jornal, sustentados por 13 anos e seis meses. O livro analisou dois períodos: o primeiro, de janeiro de 2003, ano da posse, a maio de 2008; e o segundo, de setembro de 2008, mês da falência do Lehman Brothers, a 31 de março de 2009, para que os verbetes econômicos não ficassem defasados em relação à crise financeira de 2008.

Visto que temos um presidente que decididamente gosta da própria voz, o livro se embrenha neste universo e passa a ser peça fundamental para qualquer estudioso que queira analisar a Era Lula. O livro não se propõe a analisar o conteúdo de sua gestão na Presidência, mas é estimulante quando registra, com fartos dados, que todos os feitos que Lula se atribui na área social poderiam ser reivindicados pelos antecessores. É particularmente curioso rememorar como Lula criticava o programa Bolsa Escola e ridicularizava o governo FH por distribuir "bolsa isso, bolsa aquilo", antes de sua própria administração jogar para o alto todas as políticas de combate à pobreza que trouxera da campanha eleitoral e dos tempos do PT na oposição. (Ver frases em destaque acima).

Mas então, por que Lula tem uma popularidade maior do que todos os presidentes que o antecederam?

Não é difícil descobrir, depois da detalhada pesquisa do autor do livro, as razões do sucesso de Lula como orador. Ele geralmente parte de alguma experiência de dificuldades pessoais (ele as tem, não são forçadas), emenda numa metáfora (jogador de futebol, terra, pé de laranja ou "pé de coisa", como ele próprio diz), depois vai para um de seus bordões preferidos o "é como" ("governar é como uma maratona", "governar é como plantar", "imprensa é como coração de mãe", "presidente é como pote de água benta").

"Repetição, metáforas facilmente entendidas pelo cidadão comum, linguagem simples e convencional, essa é a fórmula de Lula", aponta Kamel em seu livro.

Quando essa fórmula dá certo num governo, até as gafes podem somar. É o que ocorre no complexo universo de Lula - e não tem sido por falta delas que os discursos presidenciais perdem em emoção. O autor entende que o "estilo Lula" está de tal maneira absorvido por todas as plateias, que ele obteve "um salvo-conduto que políticos geralmente não têm". E assim, o que no começo do governo era gafe virou espontaneidade.

Isso talvez explique a profusão de impropriedades, erros, palavrões e gracinhas mal colocadas nas falas de Lula, mesmo em solenidades delicadas, das quais geralmente só os assessores e subordinados riem:

- Todos nós temos um pouco de loucos dentro de nós. É só fazer uma retrospectiva do comportamento pessoal dos últimos dez anos. (Lançamento do Plano de Saúde Mental, em 2003)

- Quando se aposentarem, não fiquem em casa atrapalhando a família. (Sanção do Estatuto do Idoso, em 2003)

- A leitura, para uma criança, é o mesmo que uma esteira para pessoas da nossa idade. Muita gente até coloca uma esteira no quarto (...) Mas todo dia se levanta e dá uma preguiça desgramada. (Visita à Bienal do Livro, em 2004)

- Nós estamos andando com muita solidez para encontrar a possibilidade, com o chamado Ponto G, de fazer um acordo. (Declaração à imprensa ao lado do presidente dos EUA George Bush, em 2007)

Napoleão na China e África limpa

Aos exemplos acima, somam-se os erros históricos, como dizer que Napoleão esteve na China (nunca ocorreu), que Oswaldo Cruz descobriu a vacina da febre amarela (ele tão somente combateu o mosquito transmissor da doença), que a Torre Eiffel demorou décadas para ser construída (foram apenas dois anos) ou que o presidente João Goulart renunciou (foi deposto).

Mas talvez nunca este "salvo-conduto" tenha ficado tão evidente como quando, em viagem à Namíbia, em 2003, querendo elogiar a capital do país africano, Lula disse algo que na boca de Fernando Henrique, José Sarney, Getulio Vargas ou Dom Pedro II seria um escândalo mundial:

- Quem chega em Windhoek não parece que está num país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas arquitetonicamente e têm um povo tão extraordinário como tem essa cidade.

Definitivamente, Lula é o único líder político que pode dizer que a África é, em geral, suja e feia. Se ele deveria ou não dizer coisas assim, é outro problema. Mas o fato é que o conjunto de atributos que fazem dele um líder admirado pelo povo brasileiro lhe permitiu fazer isso. E o "Dicionário Lula" é, a partir de agora, obra fundamental para quem quer entender o fenômeno. (R.S.M.F.)