Título: Contra a ingerência americana
Autor: Oliveira, Eliane; Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 18/08/2009, O Mundo, p. 25

Presidente mexicano descarta ação militar dos EUA, nega derrota para o tráfico e condena reeleição

ENTREVISTA Felipe Calderón

BRASÍLIA. O presidente do México, Felipe Calderón, completa hoje 47 anos em meio a uma batalha duríssima, na qual mobilizou mais de 40 mil soldados do Exército para debelar o controle crescente do narcotráfico sobre fatias do território e da sociedade de seu país. Alvo de críticas frequentes de analistas que veem o aumento da violência, com mais de 12 mil mortes em três anos, e já dão a guerra por perdida, Calderón mostra obstinação ao dizer que é necessário perseverar.

Cobra a responsabilidade dos Estados Unidos e descarta completamente um possível Plano México, à semelhança do Plano Colômbia, no qual os EUA já investiram mais de US$ 6 bilhões. ¿Não estamos em posição de aceitar intrusão, ingerência ou atividade militar americana em nosso território¿, diz Calderón. No poder desde dezembro de 2006, para um mandato de seis anos, Calderón diz que a história do México ensina que a reeleição é um caminho perigoso. Nesta visita ao Brasil, seu objetivo foi abrir caminhos para aumentar o intercâmbio comercial entre as duas maiores economias da América Latina. Diversificar o comércio é uma forma de fugir da dependência econômica em relação aos EUA. Nesta entrevista, concedida momentos antes de seu encontro de ontem com o presidente Lula, ele insiste que a união entre os dois maiores países da região, o que ele chama de G-2, pode trazer prosperidade e estabilidade para o continente.

O GLOBO: O México enfrenta uma guerra contra o narcotráfico e a violência associada a ele, que alguns analistas consideram perdida. Como o senhor avalia os resultados dessa luta? Acredita que seja necessária alguma mudança de estratégia? FELIPE CALDERÓN: Nosso objetivo é garantir a segurança dos cidadãos, mais do que lutar contra o narcotráfico em si. Nossa luta é contra o crime organizado. O narcotráfico está na coluna vertebral do crime organizado no México, e por isso o atacamos. O que aconteceu no México e na América Latina é que, até os anos 80, 90, o narcotráfico era apenas a passagem de drogas para os EUA. Mas, a partir da década de 90, com o crescimento da economia mexicana, os criminosos começaram a buscar mercados internos e ampliaram seus negócios: de exportadores de drogas para os EUA, passaram a distribuidores de drogas também no México. Isso implicou mudanças na estrutura do negócio e da estratégia, levando os criminosos a buscar o controle territorial e a submeter os cidadãos. Isso afetou duramente a vida dos cidadãos, através da extorsão, do sequestro, práticas mafiosas. Isso motivou o embate tão forte do governo contra os criminosos, e é o que nos motiva a perseverar nesta estratégia até que ela triunfe. Conseguimos infligir duros golpes à estrutura organizacional e financeira dos cartéis, prendemos líderes, e vamos continuar. Desde o primeiro dia de governo, adverti os cidadãos de que seria uma luta longa e cara, que custaria muitas vidas humanas, como lamentavelmente ocorreu, mas que valia a pena, pois o que estava em jogo era a segurança dos mexicanos de hoje e, sobretudo, dos do futuro.

Apesar dos esforços, continua havendo controle de territórios por traficantes e práticas como a cobrança de ¿impostos¿ por bandidos...

CALDERÓN: É precisamente isso o que estamos combatendo, e o governo federal recuperou terreno e fortaleceu a posição das autoridades.

Onde quer que surja este fenômeno, vamos atuar. Vários desses delitos de extorsão são de competência das autoridades locais, mas a União tem atuado conjuntamente para apoiar essas autoridades. Em muitos lugares, nossa atuação rendeu frutos e recuperamos a tranquilidade para muitas famílias; em outros, não, e temos que perseverar.

O México emprega o Exército nesse combate, diferentemente do Brasil, onde o governo tem medo de sujeitar os militares a acusações de corrupção e desrespeito aos direitos humanos.

Esse tipo de acusação tem sido frequente no México.

Como o senhor responde a isso? CALDERÓN: O Exército tem como funções constitucionais preservar a soberania externa e a segurança interna. Evidentemente, essas organizações criminais atentam contra a segurança interna, por isso está mais que justificada a presença do Exército neste combate. Por outro lado, a instrução ao Exército, à Polícia Federal e ao Ministério Público é atuar em estrito respeito aos direitos humanos, sem exceções. Se há infrações aos direitos humanos, investiga-se e pune-se.

O que o senhor pensa do acordo militar entre Colômbia e EUA? CALDERÓN: Cada país decide as práticas e as políticas destinadas a preservar sua segurança.

A intervenção dos EUA, através do Plano Colômbia, vai muito além do que nós propusemos com a Iniciativa Mérida, onde partimos de uma premissa de corresponsabilidade, na qual os EUA têm que assumir sua parte da responsabilidade.

Afetam-nos o consumo dos americanos, o fluxo de dinheiro ilícito em direção ao México e sobretudo o fluxo de armas. Estamos exigindo que os americanos atuem responsavelmente sobre isso e que nos forneçam equipamentos de inspeção. Não estamos em posição de aceitar intrusão, ingerência ou atividade militar americana em nosso território.

A cooperação com os EUA está avançando? CALDERÓN: Com lentidão, mas está avançando.

Não haverá um Plano México, à semelhança do Plano Colômbia, então.

CALDERÓN: Não. Há várias diferenças. Uma fundamental é esta: o Plano Colômbia foi desenhado como um plano de ajuda e intervenção; o nosso é um plano de corresponsabilidade e de não intervenção.

O senhor acredita em políticas de integração regional do combate ao narcotráfico, com países como o Brasil e a Colômbia? CALDERÓN: O que está claro para mim é que os criminosos atuam internacionalmente e que o crime organizado não conhece fronteiras. O paradoxo é este: o crime está organizado internacionalmente e nós, autoridades, não estamos organizados internacionalmente. É necessário haver mais coordenação das autoridades para combater o crime organizado.

Esse tema foi discutido ontem (domingo) durante o jantar com o presidente Lula? CALDERÓN: Não, falamos basicamente das possibilidades de uma aliança forte nos terrenos político, econômico e diplomático entre Brasil e México, as duas maiores economias da América Latina. Depois de tanto G-8, G-20 etc, deveríamos criar o G-2, entre Brasil e México, que, além dos benefícios econômicos, poderia contribuir para uma maior estabilidade em nossa região.

O México é hoje um dos poucos países da América Latina onde não há reeleição. O senhor vê relação entre essa sequência de crises e o mecanismo da reeleição? CALDERÓN: Do que posso falar é da experiência do México. No México, na segunda metade do século XIX, Porfirio Díaz encabeçou um movimento com a bandeira de não-reeleição. Depois de ganhar, ficou 30 anos no poder. Isso provocou outra revolução mexicana, com Francisco Madero, com a bandeira da não-reeleição. Ganhou e depois o mataram. Depois da Constituição de 1917, o primeiro presidente revolucionário, Álvaro Obregón, também quis se reeleger e o mataram antes de tomar posse no segundo mandato. Para nós, a lição histórica é bem clara: durante quase 70 anos de poder presidencial absoluto, o único limite que houve foi o do tempo, e me parece que foi um limite sábio. Não quero opinar sobre outros países, mas compartilhar a história do México, que tem ensinamentos muito interessantes.

Por que o México não está mais interessado no Mercosul? É por causa do presidente da Venezuela, Hugo Chávez? CALDERÓN: Não. Gostaria que o Mercosul realmente prosperasse. Nós temos, por exemplo, um acordo de integração com o Uruguai bastante bom. No entanto, cada vez que queremos avançar mais, os mecanismos do Mercosul impedem que o Uruguai o faça. Gostaria de avançar muito mais claramente em um acordo comercial profundo com o Brasil. Creio que devemos explorar as possibilidades de um tratado de livre comércio. Somos as duas maiores economias da América Latina, é absurdo que tenhamos apenas 1% do nosso comércio entre os dois países.

E quanto ao governo do presidente Barack Obama, já houve mudanças para o México? CALDERÓN: Creio que a mudança na administração dos EUA foi muito positiva para toda a região. Tenho muita esperança na gestão Obama, que tem mais interesse pela nossa região.

A crise econômica nos EUA afetou duramente o México. Há sinais de recuperação? CALDERÓN: O epicentro da crise foram os EUA, e eles são nossos vizinhos. Nossas exportações dependem em 83% deles. Foi um primeiro semestre muito duro para o México, o pior de que temos registro, mas já há indícios de recuperação.

* Enviada especial