Título: O cerco se fecha
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Fonte: O Globo, 20/08/2009, Opinião, p. 6

Os 30 anos de existência da Associação Nacional de Jornais (ANJ), comemorados terça-feira, coincidem com quase duas décadas e meia da redemocratização, 21 anos de promulgação da Carta que garantiu o restabelecimento do estado de direito democrático, e estamos há apenas três meses e meio da revogação, pelo Supremo Tribunal Federal, da Lei de Imprensa, herdada do autoritarismo da ditadura militar. E mesmo assim a liberdade de expressão, em geral, e de imprensa, em particular, enfrenta sérias ameaças. Tão mais perigosas porque não ocorrem em um regime de exceção.

Algumas delas, sibilinas, até são embaladas num invólucro de legalidade.

Uma simples consulta ao balanço divulgado pela ANJ de atos contrários à liberdade de imprensa ¿ garantida pela Constituição, como acaba de reafirmar o próprio STF ¿ demonstra a extensão do cerco que se vai armando em torno dos meios de comunicação, em especial jornais.

No primeiro mandato de Lula, a pressão sobre a imprensa partiu do governo, quando o Palácio acolheu ¿ e depois recuou ¿ a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, um braço repressor paraestatal destinado a patrulhar os profissionais, sob ameaça até de cassação de registro. Também fez parte daquela onda repressora, abortada pela reação da sociedade, a ideia de instituição de uma agência (Ancinav), para intervir no conteúdo da produção audiovisual e ampliar a carga tributária sobre as emissoras de TV.

A situação atual é mais complicada, porque certos movimentos contrários às liberdades não são facilmente perceptíveis na superfície do cotidiano.

Uma fonte de cerceamento do trabalho da imprensa é a Justiça, quase um contrassenso, pela simbologia positiva que têm os tribunais ¿ Justiça remete a liberdades democráticas. Porém, dos 31 casos de agressão à liberdade de imprensa, listados pela ANJ, 12, ocorridos nos últimos 13 meses, derivam de decisões de juízes contra a publicação de notícias, um ato inaceitável de censura prévia.

Estes atentados à Constituição costumam se concentrar na primeira instância judicial, seja por imaturidade pessoal ou profissional de jovens magistrados. A maioria dos casos ocorre em cidades menores, também por causa de uma deletéria proximidade entre Justiça e poder político local. As decisões liminares, no entanto, costumam ser derrubadas em instâncias superiores.

A censura sobre o jornal ¿O Estado de S. Paulo¿ é de outra magnitude e chama a atenção para a necessidade de mudanças a fim de que se impeça para sempre a aplicação destas mordaças judiciais.

O cerceamento ao trabalho do jornal já foi estabelecido numa instância elevada, pelo desembargador do Tribunal de Justiça de Brasília Dácio Vieira. Um primeiro problema no ato do magistrado é que, apesar de manter relações pessoais com o clã Sarney, ele não se declarou impedido de avaliar o pedido de censura ao ¿Estado¿ encaminhado por Fernando Sarney, filho do presidente do Senado.

Insiste-se: este é um deslize ético a ser analisado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Fernando não desejava ¿ e teve êxito, pelo menos por enquanto ¿ que o jornal continuasse a publicar informações da Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, por causa da qual ele está indiciado sob a acusação de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, entre outros crimes de colarinho branco.

A alegação é que o processo corre sob segredo de Justiça. Ora, a argumentação é pobre para justificar o injustificável, a censura. A imprensa se guia pelo interesse da sociedade, enquanto cabe ao poder público zelar pelo sigilo nos tribunais, não ao repórter. Caso as informações publicadas sejam falsas, que o atingido procure a Justiça, e o veículo, assim como o profissional, seja devidamente punido.

Além da aberração da existência de laços de amizades entre o desembargador e a família Sarney, o fato de o primeiro recurso contra a censura, impetrado no mesmo tribunal, não ter sido aceito atesta a ação de uma outra praga existente nas instituições públicas: o corporativismo.

Em boa hora, decidiu a ANJ estudar, com a ajuda da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades, a melhor maneira de encaminhar ao STF o pedido de aprovação de uma súmula vinculante, para impedir que as instâncias inferiores da Justiça atuem como órgãos decretadores de censura prévia, um espectro do autoritarismo que teima em sobreviver.

A imprensa não deseja pairar sobre a Lei ¿ por indesejável e até mesmo impossível. Mas, como a liberdade de expressão garantida pela Carta não tem sido exercida na plenitude, por causa de liminares inconstitucionais, é necessário um pronunciamento da mais alta Corte, para que o direito de a sociedade informar-se não seja limitado. Recuperar e proteger este direito é fundamental para a preservação da democracia.