Título: Convivendo com a seca para mudar a caatinga
Autor: Lins, Letícia
Fonte: O Globo, 06/09/2009, Economia, p. 31

Projeto Dom Hélder Câmara, parceira entre governo e ONU, leva tecnologias e recursos ao semiárido nordestino

CARAÚBAS (RN). A caatinga está mudando. Isso se deve, em parte, ao Projeto Dom Hélder Câmara (PDHC), parceria entre o governo brasileiro e o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Fida), órgão das Nações Unidas que financia iniciativas de desenvolvimento humano em várias regiões semiáridas do mundo. Implantado em 2003, o projeto está hoje em seis estados e 77 municípios. Ele contrata organizações não governamentais e entidades educativas para ensinar a comunidades do Nordeste tecnologias de convivência com o semiárido e meios de obter empréstimos de instituições financeiras. Ou seja, ensina a conviver com a seca.

Respeita-se a vocação das comunidades, ou seja, a que criava cabras, mas perdia o rebanho a cada seca, melhora essa criação, por exemplo. E ensina-se a agregar valor, beneficiando o produto.

Segundo estudo do Bird de 2001, 75% dos recursos que iam para projetos no Nordeste ficavam na burocracia. No caso do Projeto Dom Hélder Câmara, só 17% ficam na burocracia.

No Brasil, o Fida conta com uma rede liderada pelo PDHC que reúne cerca de 80 parceiros, sendo 26 de peso, como Petrobras e Banco do Nordeste do Brasil, além de universidades e igrejas. Segundo o diretor do projeto, o economista Espedito Rufino, o objetivo é atingir 32% dos 900 mil quilômetros quadrados do semiárido nordestino.

Para ONU, sertanejos `saíram do século XVIII para o XXI¿ Em Caraúbas, município a 330 quilômetros de Natal, e outras 77 cidades do Nordeste, cerca de 15 mil famílias já não tentam sobreviver apenas do secular tripé milho-mandioca-feijão, que, quando muito, lhes garantia apenas a subsistência. Quando perdiam a colheita com a seca, os pequenos produtores iam para as frentes de emergência, criadas pelo governo.

Em meados da década de 1980, os órgãos oficiais comemoraram a implantação de cem mil pontos de água no semiárido: açudes, poços e cacimbões.

Sem a devida orientação técnica, eles pouco adiantaram.

Nas primeiras chuvas, 80% das obras iam embora. Eram as chamadas ¿barragens Sonrisal¿.

Agora, os pequenos agricultores sertanejos utilizam barragens subterrâneas, que não são destruídas no inverno nem deixam evaporar a água no verão, garantindo terra molhada todo o ano. Os cultivos tradicionais vêm sendo substituídos por hortas orgânicas, que significam não só mais rendimentos como uma nova cultura alimentar. Eles também vêm agregando valor à produção, ao fazer sucos, compotas, polpas congeladas e processamento da castanha de caju.

Quase todas as casas no Sertão do Apodi (RN) têm hoje cisternas, iniciativa implantada pela Articulação do Semiárido, rede que visa a garantir água potável às comunidades.

O impacto inicial do PDHC já foi reconhecido pelo próprio Fida, cujo vice-presidente, Kevin Cleever, afirmou que os sertanejos ¿saíram do século XVIII para o XXI¿. E não é difícil constatar isso, principalmente no Rio Grande do Norte, onde há o maior número de famílias beneficiadas: 2.042, espalhadas em 60 comunidades e assentamentos de 17 municípios.

Comunidades como a de Sombras Grandes, que não tinha água ou energia e registrava altos índices de Mal de Chagas, devido às casas de taipa. Hoje, suas 30 famílias têm luz, água encanada, chuveiro e residências em alvenaria. Elas viviam de uma atividade predatória: extrair madeira da caatinga para fazer carvão. Agora, aproveitam a água de poços perfurados pela Petrobras em busca de petróleo para irrigar hortaliças e pomares orgânicos.

Criam galinhas de capoeira, produzem adubo natural, praticam a caprinocultura e vão iniciar o plantio de algodão.

¿ Antes aqui era só carvão e lenha, e agricultura de sequeiro (em área sem irrigação) para consumo. Não tinha casa, luz, água nem renda. Agora todo mundo tem TV, máquina de lavar roupa, geladeira, e a água não é mais do pote ¿ afirma Naelson da Silva Medeiros, de 28 anos, presidente da associação de moradores local.

Não muito longe dali, no assentamento Petrolina, Roberto Abel da Silva, também de 28 anos, comemora as mudanças após a instalação de uma minifábrica para processamento de castanhas de caju. Antes, a castanha in natura era vendida por R$ 0,80. Agora o preço do quilo passou para R$ 18, sendo processados cerca de 5 mil quilos por mês. São 43 famílias envolvidas, que produzem também compotas do fruto e um saboroso mel de caju que não leva açúcar, que se esgota nas feiras de agricultura ecológica ou familiar.

Na comunidade vizinha, Pedra II, são as mulheres que comandam: produzem cerca de 800 quilos de alimentos mensais à base das frutas e vendem tudo.

A atividade hoje é a maior fonte de renda do grupo, segundo Aracilda Cardoso de Sena.

Código de barras para chegar ao supermercado No assentamento Santa Agostinha, a 18 quilômetros do Centro de Caraúbas, as colmeias fazem a festa de 31 famílias. Além de trabalhar na produção do mel, um grupo de 24 jovens fabrica artesanalmente cosméticos como sabonetes, cremes de barbear, óleos bifásicos, sais para banho ¿ uma atividade inédita na caatinga.

¿ Essas atividades mudaram até a forma da nossa união, enquanto comunidade.

Está todo mundo se associando, e a renda familiar engordando ¿ conta o coordenador do grupo, Francisco Evanildo Costa Melo, de 29 anos.

Em Apodi, a 364 quilômetros de Recife, os pequenos agricultores já têm entreposto de mel, com selo do Serviço de Inspeção Federal. O produto, em bisnagas ou sachês, vai para a merenda escolar. Mas o sonho do tesoureiro do grupo, Francisco Moreira Costa, de 61 anos, é conseguir um código de barras para chegar aos supermercados: ¿ O serviço é caro. Para o pequeno (produtor), as coisas ainda são mais difíceis