Título: O divórcio dos índices
Autor: Garcia, Marcelo
Fonte: O Globo, 08/09/2009, Opinião, p. 7

Não tenho dúvida que a questão mais urgente da agenda brasileira é o combate à pobreza.

A pobreza mata. Limita o presente e destrói o futuro. Aniquila gerações. As consequências dramáticas da pobreza deveriam justificar a implantação de uma sólida agenda nacional capaz de resolver o problema de forma definitiva, mas, infelizmente, isso não tem sido possível.

O combate à pobreza é responsabilidade do Estado e exigência da sociedade.

A segurança de renda é uma conquista, mas precisamos avançar ainda mais conduzindo programas sociais que ofereçam caminhos para uma inclusão social sustentável.

Não podemos manter os pobres à margem do desenvolvimento econômico e educacional. Trata-se de um erro de graves consequências. E a primeira delas está evidente: pesquisas sobre a nossa realidade mostram o divórcio hoje existente entre os índices de pobreza e a desigualdade social.

Levantamentos feitos no país apontam queda na pobreza de forma continuada no Brasil a partir dos anos 60 e, de maneira mais acentuada, a partir dos anos 90. A pobreza de fato diminuiu nos últimos 40 anos. Esta aceleração se deu a partir de um tripé: controle da inflação, política continuada de transferência de renda a partir de 1996 e queda significativa no valor do dólar em relação ao real a partir de 2003.

Os mesmos estudos que apontam queda da pobreza mostram, ao mesmo tempo, que a desigualdade social no Brasil é maior hoje que nos anos 60. O índice de Gini, que mede desigualdade, era de 0,537 em 1960. Em 2009, é 0,543. A pobreza em 1960 atingia mais de 69% da população e hoje chega a 14,1%. O que podemos entender desses números? Que existe um divórcio entre os índices de pobreza e de desigualdade.

Tudo indica que a diminuição da pobreza não está associada ao desenvolvimento econômico e ao fortalecimento da educação, ou seja, não está sendo feita de forma sustentável. A garantia apenas de transferência de renda não sustenta o avanço dos mais pobres, embora os economistas, em geral, apostem nesta direção.

A Lei Orgânica da Assistência Social determina que o Estado deve prover todos os mínimos sociais. Estamos ampliando o mínimo da renda, mas temos de fazer mais. Precisamos debater os dados sobre IDH nas cidades mais pobres fazendo correlação com PIB médio da cidade e Ideb, índice do Ministério da Educação, por exemplo. Além de uma questão de múltiplas inseguranças sociais (saúde, educação, habitação, qualificação profissional, cultura), a pobreza se revela de formas variadas.

Seu combate exige caminhos para muito além dos programas de transferência de renda.

O trânsito entre pobreza e extrema pobreza se avalia em dólar ¿ quem ganha menos de um dólar ao dia está na extrema pobreza. Hoje, o dólar está em média em R$ 1,87. E se for, no fim da tarde, a R$ 2,50, isto vai significar que o pobreza aumentou? A artificialidade da saída da pobreza, e da extrema pobreza, só pela renda vem à prova na hora. Não devemos ter dúvida a este respeito.

Mesmo sendo responsabilidade do Estado, a luta contra a pobreza não deve ser monopólio estatal. Ela só será vitoriosa se for compromisso da sociedade brasileira com o seu tempo. Não é normal aceitar que o país continue com tantos pobres e com tamanha desigualdade.

A indiferença é uma irresponsabilidade.

Assim como a omissão.

Todos nós, a começar pelo governo, deveríamos nos empenhar em cumprir as Metas do Milênio, compromisso da Organização das Nações Unidas, ONU, com o fim da fome no mundo. O Brasil é signatário do compromisso que prevê a redução da desnutrição mundial à metade, até 2015.

Líderes políticos e empresariais deveriam construir um pacto nacional de combate à extrema pobreza. A cidadania também é garantia de progresso social. Quanto maior a capacidade de organização da sociedade, mais eficaz é a luta contra a pobreza.

Há muito a fazer, a começar pela agenda nacional de metas sociais.

Acredito que os pobres vão avançar de fato se houver integração entre garantia de renda, desenvolvimento econômico, educação de qualidade e cidadania.

Temos de ter, sim, porta de saída para programas sociais e assistenciais.

Abrir mão destas portas é, sobretudo, fechar histórias e fechar páginas do futuro do Brasil.

MARCELO GARCIA é presidente do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social e secretário-executivo do Instituto CNA, da Confederação Nacional da Agricultura.