Título: Justiça anula doações de fiéis à Universal
Autor: Bottari, Elenilce
Fonte: O Globo, 13/09/2009, O País, p. 10

Processos em todo o país mostram que, desesperadas, pessoas perderam tudo e passaram fome para receber graças prometidas

Com o salmo de Malaquias ¿ ¿Trazei todos os dízimos à casa do tesouro¿ ¿ como centro de sua pregação, a Igreja Universal do Reino de Deus parece ignorar a oração de Mateus ¿ ¿perdoai as nossas dívidas, assim como temos perdoado os nossos devedores¿.

É o que demonstram processos que se espalham pelo país de fiéis que reclamam a devolução de suas doações. Com base no artigo 548 do Código Civil (¿É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador¿), a Justiça vem anulando contratos de fiéis que beneficiaram a Iurd.

Foi assim que o Juizado Especial de Samambaia, Distrito Federal, anulou a doação feita pela dona de casa Lívia Inácia de Andrade.

Mãe de uma criança portadora de necessidades especiais e vítima de violência doméstica, Lívia abandonou o marido depois que ele tentou matála.

Desesperada, buscou ajuda na Igreja Universal. Torrou o único patrimônio, um Fiat Uno, na ¿fogueira santa¿ da Iurd, evento em que os fiéis se dispõem a se desfazer de tudo o que têm: ¿ O pastor garantiu que, se houvesse necessidade, a igreja devolveria. Quando pedi a devolução, disse que eu tinha doado a Jesus, e que era para eu cobrar de Deus a graça não recebida.

Eu pedia a cura do meu filho.

Iurd manteve doação alegando que fiel não teve fé Segundo a sentença, a Universal tinha que devolver o carro ou o valor em dinheiro em 48 horas, mas o caso está há dois anos aguardando recurso.

¿ Argumentamos com base em duas situações. No momento em que doou o carro, ela estava em profundo estado de depressão, incapaz de ter consciência de seus atos, e também com base na falta de reservas para sua subsistência. Mas o juiz achou que o estado emocional dela não estava devidamente comprovado e anulou com base na falta de recursos mínimos para sobreviver ¿ explicou o defensor público José de Almeida.

Ele afirma que o direito de anular a doação nesses casos é certo, mas diz que a dificuldade está em provar o valor apurado.

Ele defende o caso da costureira e também o da ex-fiel Maria Moreira de Pinho, outra vítima da ¿fogueira santa¿, que conseguiu reaver na Justiça o direito a receber o valor de R$ 10 mil de um cheque doado à igreja. Acreditando que receberia a graça em dobro, ela vendeu dois imóveis e as duas máquinas de costura que usava para trabalhar, entregando à igreja R$ 106.353,11 .

¿ Apenas os R$ 10 mil foram em cheque. Ela ficou sem casa e sem sustento. Procurou a igreja, mas o pastor disse que não devolveria, que a culpa era dela porque não tinha rezado com fé suficiente. Os filhos abandonaram a mãe. Na miséria, ela recorreu ao escritório modelo da PUC. Tivemos que entrar até com ação de alimentos contra os filhos para garantir que ela não passasse fome ¿ contou o advogado Amir Labib.

Depois de perder em primeira instância, a costureira ganhou o recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo para reaver pelo menos o valor do cheque. A igreja está recorrendo no STJ.

Outra que ganhou o direito de reaver a doação foi a viúva Gilmosa Ferreira dos Santos. Foi à Justiça após descobrir que a filha, Edilene Ferreira dos Santos, abalada pela morte do pai, doara o carro da mãe, um Golf 2005, à Universal. Arrependida, a jovem não conseguiu reaver o veículo.

¿ Edilene começou a frequentar a igreja após a morte do pai. Doou os móveis de casa e depois o carro da mãe. Quando a viúva tentou reaver o carro, foi agredida e exposta à humilhação na igreja ¿ disse o advogado Nilton Cardoso das Neves.

O juiz da 7aVara Cível de Goiânia determinou que o veículo seja restituído e que sejam pagos valores referentes a lucros cessantes, depreciação e desgastes do carro, bem como reparação de R$ 10 mil por danos morais.

Porteiro chegou a ser interditado pela família Alguns casos estão sendo investigados na ação penal movida pelo MP de São Paulo contra o bispo Edir Macedo, presidente e fundador da Iurd, e mais nove membros da igreja, que tramita na 9ª Vara Criminal da capital paulista. Entre eles, o caso do porteiro aposentado Edson Luiz de Melo, de 45 anos, ex-fiel da igreja em Belo Horizonte, que ganhou da entidade um diploma de dizimista assinado por Jesus.

Doava 15% do salário, além de ofertas. Até o cheque da venda de uma chácara (R$ 5.390) teria sido levado aos pastores. Edson foi interditado pela família, que entrou com uma ação de indenização na Justiça, avaliada pelo advogado Walter Soares Oliveira em R$ 30 mil. A igreja perdeu na primeira e segunda instâncias.

O advogado Arthur Lavigne, que defende o fundador da Universal, Edir Macedo, e nove outros integrantes da cúpula da igreja na ação penal que corre em São Paulo, disse que não poderia comentar os casos, porque dois deles estão ligados a processos penais que correm em segredo de Justiça