Título: Com petróleo e sem ganho social
Autor: Nogueira, Danielle
Fonte: O Globo, 20/09/2009, Economia, p. 25

Países com reservas gigantes, como Arábia Saudita e Rússia, têm baixo IDH em educação ou saúde

Apontadas pelo governo como caminho para se fazer justiça social no país, as reservas de petróleo do pré-sal não são garantia de maiores ou melhores investimentos em educação e saúde. Esta é a conclusão de especialistas que analisaram, a pedido do GLOBO, indicadores sociais das nações que abrigam as dez maiores reservas do mundo. Embora a maior parte delas esteja no grupo de alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, basta olhar os componentes do indicador por dentro para verificar que é a renda elevada que as puxa para cima no ranking, ofuscando o mau desempenho nos demais critérios - acesso a ensino e longevidade.

O caso mais gritante é o dos Emirados Árabes. Donos da sexta maior reserva de petróleo do mundo, ocupam a 31ª posição no ranking de IDH, com pontuação de 0,903 - quanto mais próximo de um, maior o nível de bem-estar social. Se considerado apenas o critério de renda, o país sobe para o quinto lugar, com Produto Interno Bruto (PIB, soma dos bens e serviços produzidos) per capita de US$49.116, quase cinco vezes maior do que o brasileiro (US$8.949), e superior ao de países como Dinamarca e Suécia. Mas se o critério é o percentual de crianças e jovens matriculados em escolas e universidades, os Emirados despencam para a vergonhosa 122ª posição.

Desafio do Brasil é mudar padrão de gastos

Nos outros três países do Oriente Médio com reservas gigantes e alto IDH, a situação se repete. Arábia Saudita, Kuwait e Líbia - todos com IDH acima de 0,8 - ficam abaixo da 90ª posição, quando considerado um dos dois indicadores que medem o acesso à educação (taxa de alfabetização de adultos e matrículas em escolas e universidades). A expectativa de vida, porém, não é tão baixa. No Kuwait, por exemplo, é de 77,4 anos, próxima à de Portugal (77,9).

- Esses países subsidiam habitação, saúde e alimentação, mas não consideram educação uma prioridade. O modelo de desenvolvimento se baseia na indústria petrolífera e na importação de mão de obra - diz Paulo Gabriel Pinto, coordenador do Núcleo de Oriente Médio da UFF.

Na Rússia e no Cazaquistão, que detêm a sétima e nona maiores reservas de petróleo do mundo e também estão no grupo de alto IDH, a realidade é inversa à dos países árabes. Com taxas que beiram os 100% de alfabetização, herança do comunismo, exibem baixa expectativa de vida, na faixa dos 65 anos. A edição de 2008 do ranking de IDH da ONU avaliou 179 países e tem por base informações referentes a 2006. O próximo relatório será divulgado em 5 de outubro.

Para o economista sênior do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud) e coordenador do relatório do IDH no Brasil, Flavio Comim, o nível de desigualdade e o papel do Estado na distribuição de riqueza são determinantes para transformar renda, obtida com recursos naturais ou não, em bem-estar social:

- Transformar renda em desenvolvimento não é um processo mecânico. Se o petróleo está nas mãos de poucas famílias, como na Arábia Saudita, a tendência é de maior apropriação da riqueza por poucos. É isso que temos que evitar.

O Brasil tem a 16ª maior reserva de petróleo do mundo e ocupa a 70ª posição no ranking do IDH, o que lhe garante lugar no grupo de alto desenvolvimento humano. A depender das escolhas que nortearão o uso do pré-sal, poderá galgar novos degraus ou repetir o erro das nações dependentes do petróleo. Tramita no Congresso projeto de lei para alterar o marco regulatório da região, do regime de concessão para partilha de produção. Se aprovado, o governo será dono do petróleo extraído do subsolo - hoje de propriedade das empresas - e, assim, poderá ditar o ritmo de produção dos campos. Também está prevista a criação do Fundo Social, cujos recursos vindos do pré-sal seriam investidos em educação, meio ambiente, ciência e tecnologia e no combate à pobreza.

Segundo cálculos não-oficiais, o Fundo teria até US$100 bilhões no pico de atividade do pré-sal. Mais recursos, porém, não significam mais investimentos. Em 2008, 25% da arrecadação da União com royalties e participações especiais foram contingenciados. Mais gastos tampouco são garantia de melhora de serviços. As crianças de Trajano de Moraes sabem disso muito bem. Tiraram a maior nota do Estado do Rio na Prova Brasil 2005, aplicada pelo Ministério da Educação (MEC), embora o município tenha gasto apenas R$115 mais por aluno naquele ano que Silva Jardim, que ficou em penúltimo lugar.

- O problema da educação no Brasil não é dinheiro, e sim como gastá-lo - diz o professor de economia da educação da USP e do Insper Naércio Menezes Filho.

Para Comim, o desafio do Brasil é mudar seu padrão de gastos. Hoje, ele é regressivo, ou seja, recebe mais quem tem mais. O próprio MEC reconhece que investe seis vezes mais no aluno universitário do que no aluno do ensino básico. O resultado dessa política ficou evidente na Pnad, divulgada sexta-feira passada pelo IBGE: a taxa de analfabetismo ficou estacionada em 10% entre 2007 e 2008, e o percentual de jovens entre 18 e 24 anos que estudam caiu de 30,9% para 30,5%. A meta do MEC é reduzir aquela diferença para quatro, padrão no Primeiro Mundo.

Ligia Bahia, coordenadora do Laboratório de Economia Política da Saúde da UFRJ, engrossa o coro de Comim.

- Temos, formalmente, um sistema universal de saúde. Mas o padrão de financiamento é incompatível com a universalização do direito à saúde - diz Ligia, lembrando que o gasto maior (55%) recai sobre famílias e empregadores.

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil gasta 3,5% do PIB com saúde pública. Países com sistemas universais destinam ao menos 6% do PIB a este fim. Entre eles o Canadá, que abriga a 12ª maior reserva petrolífera do mundo. Um exemplo a ser considerado.