Título: Tiros que atingem o ensino
Autor: Rocha, Carla e Amora, Dimmi
Fonte: O Globo, 24/08/2007, Rio, p. 18

Segundo Unicef, confrontos no Complexo do Alemão prejudicaram pelo menos 4.800 alunos.

Aos 19 anos, Ruben ainda não chegou ao ensino médio, estando atrasado na programação normal para sua idade. Somente este ano, durante os confrontos no Complexo do Alemão, ele ficou pelo menos duas semanas consecutivas sem aula. Ninguém gosta de contar essas histórias, mas Ruben, que tem planos de se tornar jornalista, aceitou expor seu problema, o mesmo de seus colegas e de crianças do lugar.

- Já fiquei várias vezes sem ir para a escola por causa de ocupações na favela, isso já é normal na comunidade. Qualquer tiro que se escuta, as mães não deixam os filhos irem às escolas. Ou então as próprias escolas que ficam ao redor do morro não abrem as portas. Muitas crianças ficam sem estudar, aumentando o índice de abandono das escolas - diz ele.

Duzentas escolas em áreas de risco

O escritório brasileiro do Fundo das Nações Unidas Para a Infância (Unicef), em junho deste ano, comparou, em nota oficial, a situação de crianças e adolescentes do Brasil com a daqueles que vivem em lugares conflagrados, como a Faixa de Gaza, no Oriente Médio. Um dos motivos do comunicado foram os confrontos no Alemão, as balas perdidas, o perigo de voltar para casa no meio de um tiroteio.

O Unicef estimou que os conflitos no local, que começaram no início de maio, atingiram pelo menos 4.800 crianças, que ficaram sem aulas ou foram transferidas para uma única escola, onde milhares de alunos passaram a estudar apenas duas horas por dia.

Ruben lembra que, no dia da megaoperação da polícia em que 19 pessoas foram mortas, professores e funcionários de creches das redondezas foram para a entrada do morro, mas não podiam subir. Do alto, os pais, que não podiam descer, viam seus filhos aguardando o fim do tiroteio, sem banho e sem comida.

Segundo levantamento do Sindicato dos Professores do Estado (Sepe) entregue ao Ministério Público estadual, 200 escolas da rede pública da capital estão em áreas de risco.

A vida tem sido assim, cheia de proibições para jovens como Ruben. Ele conta que adotou como rotina não voltar para casa depois de sair para se divertir à noite nos fins de semana:

- Gostamos de ir a festas, algumas fora da comunidade, mas somos impedidos pela violência. Não sabemos se, na volta, vamos poder subir o morro ou se vamos nos deparar com um confronto. Ficamos ilhados, sem poder curtir. Até as crianças menores ficam sem poder sair de casa para brincar nas ruas da favela.

A vida dos namorados também mudou. A tragédia de Romeu e Julieta pode se repetir a qualquer descuido. No Complexo da Maré, Judith quase perdeu o namorado, morador de uma favela vizinha dominada por outra facção. Considerado "alemão" (inimigo) pelos traficantes locais, ele foi surpreendido ao sair da casa da namorada. Foi cercado por bandidos e ameaçado de morte. Os traficantes já estavam levando o rapaz para receber o castigo por circular na comunidade, quando surgiu o caveirão (veículo blindado da polícia). No meio do tiroteio, ele se jogou no chão e conseguiu escapar com vida.

Agora, os encontros são realizados num território neutro: a praça de alimentação de um shopping da Zona Norte.

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