Título: Em progresso
Autor: Economia
Fonte: O Globo, 24/08/2007, Economia, p. 28

O debate no STF sobre a aceitação ou não da denúncia contra 40 acusados do mensalão é emblemático por vários motivos. Uma mulher preside o Supremo, um negro relata o processo, um procurador-geral indicado pelo atual presidente da República apresenta a denúncia contra pessoas que eram do governo ou do partido oficial. Os e-mails fotografados revelam falhas de comportamento dos julgadores.

Há muito o que refletir e aprender nestes dias. A democracia é, como disse o ministro Joaquim Barbosa sobre seu voto, um "work in progress", um trabalho em andamento, uma construção. Democracia não é realidade que chega pronta. Estes dias são fundamentais no avanço da qualidade da nossa democracia.

Os personagens mostram os ganhos e erros. Aquela Corte, desde os tempos da Suplicação, teve predomínio absoluto de homens brancos. É inspirador ver diversidade na cúpula do Judiciário. Mas nada é simples. A frase escrita pela ministra Cármen Lúcia no seu e-mail ao colega Lewandowski sobre o relator levanta uma dúvida. Ela disse sobre Joaquim Barbosa: "Esse vai dar um salto social."

Por que a ministra acha que só agora ele vai dar o salto? Joaquim Barbosa já caminhou por seus méritos e passos a estrada da mobilidade social. Filho de família pobre, estudou em escola pública em Minas e foi ao exterior para mais estudar. Em um livro decorrente de tese sobre ação afirmativa, registra frases agudas sobre o que ele chama de "anomalia": o quase "monopólio dos brancos" nos postos-chaves do país. Procurador eficiente, ministro aplicado, o sistema de escolha pôs em suas mãos o processo mais importante deste governo. Não é escada para "salto social", é trabalho em progresso. Será que a ministra Cármen Lúcia diria a mesma coisa de qualquer um dos seus colegas brancos recém-chegados ao STF?

Há mais a estranhar naquelas mensagens trocadas em computadores abertos numa sessão pública. Elas revelam que ministros que trocam confidências ou pedem ajuda para formar o próprio juízo, como fez a ministra Cármen Lúcia, subvertem a idéia central da decisão colegiada. Se o tribunal é uma reunião de vários juízes, é para que cada um firme seu juízo de forma autônoma, em discussões públicas, diante dos autos e das defesas, e não em acordos paralelos. Espantoso também é o que se pode entrever da maneira como está sendo escolhido o novo ministro, que substituirá Sepúlveda Pertence.

As entranhas reveladas mostram o ponto: a construção das instituições democráticas é um trabalho, lento, permanente. As falhas só indicam a necessidade de mais apuro, mais esforço.

Já se caminhou bastante, apesar dos erros. A tendência no Tribunal deve ser mesmo a de aceitação parcial ou total da denúncia do procurador-geral. Isso fará dos 40 acusados réus no processo. Só ao fim dos trabalhos é que serão condenados ou não. A denúncia por um procurador nomeado pelo presidente da República; a possibilidade de derrota do governo num tribunal que teve seis ministros indicados pelo atual presidente mostram que as instituições estão robustas.

O processo, se houver, revelará alguns defeitos da Justiça: 700 processos esperam no STF. Este é volumoso e custará a ser digerido pela Corte. Há quem tema a virtual paralisação do Supremo. Se a idéia do foro privilegiado é discutível, muito mais é estender o direito a quem não deve tê-lo pela lei: Delúbio, Silvinho, Marcos Valério e outros que, se não estivessem no mesmo processo com deputados e ex-ministros, estariam hoje enfrentando a primeira instância.

Agora leitor, olhe para outro lado desta mesma sociedade e reflita sobre as reportagens estarrecedoras e dolorosas que vêm sendo publicadas pelo GLOBO. Elas revelam que, enquanto a classe média e a elite brasileiras comemoram avanços e protestam contra retrocessos na democracia do país, 1,5 milhão de brasileiros que moram nas favelas cariocas convivem com o terror da mais explícita tirania. O grande problema neste caso não é insuficiência de renda. O padrão de consumo, o acesso a bens, sempre se ampliando desde a estabilização, prova que a dinâmica da economia está incluindo cada vez mais brasileiros nos frutos do progresso. O que eles vivem, porém, é a exclusão do bem mais precioso conquistado pela sociedade brasileira: a democracia. Condenação sem processo, pena de morte, tortura, suspensão do direito de ir e vir, censura, terror, tudo de que o país pensava se livrar quando clamou por "Diretas Já" está em vigor. Não em outro lugar, mas em território nacional, em terrenos contíguos aos da classe média e dos ricos do Rio.

A democracia brasileira é este "work in progress", trabalho em andamento. Trava-se nas periferias do Rio a primeira das batalhas: a luta pela liberdade. Conviver com essa desigualdade de distribuição dos bens democráticos é aceitar que, no país, como no mercado imobiliário americano, haja uma espécie de "cidadão subprime", de terceira categoria.

No STF, trava-se a batalha da qualidade da democracia. O que se saberá é se o Ministério Público foi capaz, desta vez, de oferecer denúncia consistente; se os ministros votaram de forma técnica e independente. Se há chance de o país firmar um padrão de comportamento na política que não nos envergonhe. Momentos decisivos da nossa democracia em progresso.