Título: Ameaça ao conteúdo nacional na tv digital
Autor: Sanches, Sydney L.
Fonte: O Globo, 25/08/2007, Opinião, p. 7

A Revolução Francesa representou uma ruptura no processo civilizatório da humanidade. Ao longo dos dois últimos séculos, paulatinamente, os conceitos iluministas vêm sendo incorporados à construção da sociedade moderna. A modernidade revolucionária adquiriu o seu papel catalisador a partir do instante que consagrou o indivíduo como o personagem central da sociedade e estratégico para o desenvolvimento social e econômico.

Os marcos revolucionários Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ainda atuais, norteiam a sociedade ocidental. Sem pretensão de aprofundar a complexidade desse episódio histórico, a Liberdade foi obtida com a separação do indivíduo do Estado e a criação do Estado laico, com regras definidas e iguais para todos; posteriormente, a Igualdade foi, através dos direitos sociais, como educação, trabalho, previdência etc.; por fim, a Fraternidade, ainda em processamento, está atrelada aos novos desafios da sociedade global, alguns transnacionais, que impõem a comunhão de valores que nos levem ao exercício da solidariedade sem prejuízo da conquista dos direitos fundamentais. Esses princípios foram todos incorporados à nossa Constituição.

O direito de propriedade intelectual é filho desse processo civilizatório, que legalmente houve por bem assegurar como direito fundamental a versão mais cara do gênio humano: a criação. Através da proteção do criador, o mundo moderno se desenvolveu ao longo do século XX nas artes e na tecnologia. A sociedade entendeu que, ao reservar aos seus criadores o pacífico e exclusivo exercício de seus direitos intelectuais, garantiria a construção da identidade dos povos e a magia das culturas.

Mas, o que tudo isso tem a ver com TV digital?

O discurso hoje empregado na defesa do oferecimento de uma TV digital aberta, com o livre oferecimento de conteúdo protegido, sem qualquer mecanismo de proteção, vale-se dos conceitos de Solidariedade e de Liberdade como justificativas. Triste desvirtuamento. Tanto a Solidariedade como a Liberdade jamais se prestaram a isso e, como a maioria dos conceitos hoje empregados publicamente, sofrem com os seus usos casuísticos. Liberdade, no âmbito da democracia, é ter conhecimento claro dos limites de cada agente social; e Solidariedade é respeitar e saber conviver pacificamente com o direito alheio e ter a sabedoria de reconhecer e respeitar direitos fundamentais.

Antes de nos movermos no sentido de que a defesa dos instrumentos tecnológicos de proteção (chamados DRM - Digital Rights Managements) atende somente aos interesses das grandes corporações do audiovisual, que, por certo, também devem ser preservados em razão de seu destacado papel na difusão da cultura, a inscrição de mecanismos técnicos de proteção, que deveria ocorrer por via das transmissões digitais, se atendidos, revelaria a garantia de que não haveria violação aos direitos dos autores, intérpretes, atores, diretores, roteiristas, cenógrafos etc. A alta qualidade das transmissões permitirá cópias fiéis aos originais e a ausência de proteção será um terreno fértil à violação. Ou seja, a defesa de uma televisão digital sem proteção só atende àqueles que subtraem e se apropriam arbitrariamente dos direitos intelectuais. O fácil discurso de defesa ao consumidor ou de garantia da liberdade não podem servir para descartar o direito dos criadores e de toda a indústria criativa, sob pena de aniquilarmos com toda a capacidade criativa nacional. O Comitê Gestor de Direitos de Conteúdos no Sistema Brasileiro de TV Digital, responsável pela avaliação do modelo brasileiro, entende que a aplicação de instrumentos tecnológicos de proteção é necessária e ofereceu ao governo a flexível alternativa do broadcast flag, que garantirá ao usuário cópias ilimitadas da programação oferecida sem a qualidade da alta definição, mas com qualidade igual à oferecida em DVDs, hoje muito superior à qualidade das cópias obtidas por via das transmissões analógicas. Não há, portanto, motivo para a resistência, posto que não existe prejuízo ao consumidor, ao acesso ou mesmo risco para a "liberdade". Não podemos ficar na contramão. Enquanto no âmbito internacional se discutem mecanismos de proteção às manifestações culturais coletivas, tendo como fonte a propriedade intelectual, o governo brasileiro alardeia o discurso supostamente "moderno" da flexibilização dos direitos intelectuais. Sem dúvida, um desserviço aos interesses do país. A quem isso efetivamente serve? No caso de insistirmos nessa desmedida decisão, iremos acabar por comprar conteúdo a preços absurdos, seremos taxados no âmbito internacional de fomentadores da violação dos direitos de propriedade intelectual e fadados a ter um conteúdo nacional usurpado, o que poderá representar o completo esvaziamento do criador nacional, a falência da produção nacional e a interrupção do legítimo aperfeiçoamento dos princípios do processo civilizatório. À Presidência da República cabe evitar esse caos.

SYDNEY L. SANCHES é presidente da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ.