Título: Favela censurada
Autor: Rocha, Carla e Amora, Dimmi
Fonte: O Globo, 25/08/2007, Rio, p. 20

Bandidos vetam músicas, grampeiam telefonemas e ditam até a cor da roupa dos moradores.

Uma das mais importantes manifestações culturais que surgem com força especial a partir da década de 80, o funk iniciou também uma espécie de crônica musical da realidade das favelas. Mas, hoje, parte dessas músicas tem suas letras censuradas ou manipulas para exaltar facções criminosas. O movimento hip hop - nascido nos Estados Unidos com a missão de falar da cultura das ruas, dos guetos - ironicamente também pode ser calado à vontade do bandido. A MC Joana, de 25 anos, teve que desfazer seu grupo de hip hop depois que um de seus integrantes foi surrado no morro de uma facção rival.

Ela conta que o grupo era formado por três integrantes, de morros diferentes, controlados por facções inimigas. Por isso, começaram a ter problema até para ensaiar.

- Tentamos primeiro na favela de um deles. Lá, o tráfico só deu uma idéia, numa boa, os bandidos disseram que era melhor a gente sair dali, senão ia ficar complicado. Tentamos em outro morro. Só que lá a coisa foi mais pesada. O pessoal da contenção (que fica controlando a entrada no morro) não deixou o integrante de fora do local entrar. Eles disseram que era "alemão" e deram uma surra nele. O pai do integrante que morava no local foi pedir por ele, jurou que o conhecia, que ele não era bandido. Por pouco, ele não morreu.

Punição pode ser expulsão e morte

Na sexta reportagem da série "Os brasileiros que ainda vivem na ditadura", O GLOBO mostra como é a censura sofrida por moradores de favelas dominadas por traficantes e milicianos. As vítimas são identificadas por codinomes, para garantir sua segurança. Como na ditadura militar, quem não obedece às ordens pode ser punido, com surra, expulsão do local e até mesmo a morte.

Bandidos e integrantes de grupos paramilitares censuram músicas, grampeiam telefonemas (até em orelhões), estabelecem as cores das roupas dos moradores - algumas são proibidas por algumas facções - e a forma com que eles devem se expressar, vetando frases e palavras associadas a um bando rival. É comum, quando há mudança de facção criminosa num morro, após uma guerra entre traficantes, que a população tenha de se readaptar à nova cultura que chega para impor suas regras e seu jeito de "governar".

Nas favelas, a lei do silêncio pode ser imposta caso a caso, mas também segue algumas regras gerais. Quando um bandido é morto, por exemplo, o comércio do morro tem que fechar as portas em sinal de luto. Mas os comerciantes das imediações também são atingidos pela ordem, que chega, muitas vezes, às ruas principais de alguns bairros da cidade.

Traficantes do Complexo do Alemão, em Ramos, monitoraram as ligações feitas por moradores a partir do telefone público instalado na sede da associação de moradores da Fazendinha. A escuta clandestina foi montada no período em que a comunidade foi alvo de um cerco da polícia. O grampo foi montado por um integrante da quadrilha que trabalhou como prestador de serviço numa companhia telefônica.

Morador da comunidade, Vicente, de 32 anos, disse que o traficante fez uma espécie de extensão da linha, que era monitorada numa das casas usadas pelo bando.

- A gente ouvia as vozes dos bandidos no meio da ligação. Eles (traficantes) não faziam questão de esconder que estavam ouvindo nossas conversas - diz.

Controle de TV a cabo e venda de gás

Vicente lembra que histórias sobre o monitoramento das ligações corriam pela favela. Segundo ele, durante o cerco da polícia ao Complexo do Alemão, em maio e junho, os traficantes passaram a ameaçar quem usava o aparelho, dizendo que estavam ouvindo tudo.

- Isso durou até a noite em que destruíram a rede, deixando os moradores sem telefone - disse.

A utilização de escuta telefônica não foi adotada apenas por traficantes do Alemão. A facção que controla a venda de drogas na região também já empregou o mesmo método nos morros da Mangueira e da Providência, no Centro. Nas duas comunidades, traficantes fizeram extensões em telefones públicos e até em particulares. Informes da Subsecretaria de Inteligência (SSI) revelam que as escutas e extensões clandestinas são feitas por ex-funcionários de empresas de telefonia. Com isso, os criminosos monitoram as conversas de moradores suspeitos de colaborar com a polícia.

O controle econômico também faz parte da censura imposta em favelas do estado. O tráfico explora negócios como a venda de gás de cozinha e as ligações clandestinas de TV a cabo. Há muito tempo, os caminhões de empresas distribuidoras de gás não entram em favelas. Numa comunidade da Zona Oeste, Maria, de 50 anos, chegou a tomar uma decisão inusitada quando soube que teria que passar a comprar botijão do tráfico.

- Eu fui à Secretaria de Segurança. Queria um salvo-conduto, porque já sou uma senhora e teria que comprar gás na mão do traficante. Tinha medo de que, no caso de uma operação policial, eu fosse confundida com uma viciada ou uma traficante. É claro que não me deram. Hoje, já me acostumei com a situação - diz ela.