Título: É preciso mais agilidade na quebra de sigilos
Autor: Alves, Cristina e Frisch, Felipe
Fonte: O Globo, 26/08/2007, Economia, p. 38

Presidente da CVM defende projeto que pode facilitar a punição para os envolvidos em vazamento de informação.

Sorriso tímido, voz baixa, porém firme. A nova xerife do mercado de capitais, Maria Helena Santana, não gosta de falar do ineditismo. Mas, pela primeira vez, uma mulher - vinda de um órgão regulado, da Bolsa de Valores de São Paulo - comanda a Comissão de Valores Mobiliários - o regulador -, tantas vezes presidida por advogados. Maria Helena é economista da USP. Num mercado cada vez mais movido por compras e fusões de empresas abertas, ampliação do número de investidores e suspeitas de lucros com vazamento de informações privilegiadas, ela defende que a CVM tenha mais poder para quebrar sigilo bancário e telefônico de suspeitos para aumentar as punições. Que até hoje são poucas.

Cristina Alves, Felipe Frisch, Bruno Rosa e Liane Thedim

Que mudanças a presença de uma economista na presidência da CVM, tradicionalmente comandada por advogados, traz ?

MARIA HELENA SANTANA: O colegiado tem o equilíbrio entre várias visões. A CVM tem muito apego a decisões técnicas, não é assim em todos os organismos reguladores, os votos dos diretores no colegiado sempre têm muita fundamentação. O que importa é a gente equilibrar o desenvolvimento do mercado e a proteção ao investidor.

Isso torna os processos mais lentos?

MARIA HELENA: Acho que não. Antigamente, para os inquéritos serem abertos, precisava-se montar uma comissão, que iria conduzir as investigações em cima de indícios que tinham que ser aceitos pelo colegiado. Essa etapa foi eliminada, foi dada a autoridade ao superintendente-geral da CVM para criar e instituir a comissão de inquérito e dar início aos processos.

Quantas pessoas já foram punidas por uso de informação privilegiada ("insider trading") pela CVM?

MARIA HELENA: Não são tantos casos. Esse é um tipo de ilícito muito difícil de acusar, de encontrar a prova concreta. Muitos inquéritos são abertos com indícios, as investigações avançam, as pessoas são ouvidas, outros elementos são investigados e não se consegue fazer a acusação, seja porque não se consegue estabelecer relação entre quem estava negociando e quem era detentor da informação, seja porque na hora de investigar surge uma justificativa ponderável e sólida para aquela estratégia, seja porque quem opera não é evidentemente relacionado com quem tem a informação, como a companhia ou o banco. Aí, nesse momento, seria importante ter mais agilidade e providências, que hoje estão mais acessíveis ao Ministério Público, como a quebra de sigilo bancário e telefônico. (Segundo dados fornecidos pela presidente da CVM, desde 2002 foram julgados 11 casos de insider trading, dos quais houve quatro casos com absolvição total, seis com multa e/ou absolvição de parte dos envolvidos e um de advertência).

É possível agilizar esses pedidos e investir a CVM de mais poderes?

MARIA HELENA: Em muitos casos, pedimos à Justiça, mas nem sempre é fácil convencer o juiz da importância de dar acesso a essas informações. Existe uma proposta do Coremec (Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, que reúne CVM, Banco Central, Secretaria de Previdência Complementar e Superintendência de Seguros Privados, a Susep) em curso para alterar a Lei Complementar nº 105, que regula o sigilo bancário. A idéia é tornar mais fácil a troca de informações entre os órgãos reguladores, permitindo que os dados sejam transferidos. A proposta deve ir ao Parlamento, mas não tem data.

No caso da Sadia (que anunciou uma tentativa de comprar a Perdigão), a SEC (equivalente da CVM nos EUA) fez acordo para o pagamento de multa pelos executivos acusados de usar informação privilegiada. Como está o processo aqui?

MARIA HELENA: O inquérito está na área técnica, já abriu a fase de defesa, o investidor foi acusado. No caso da Sadia, havia outros investigados, e tratar conjuntamente vários investigados faz o processo ser mais longo. A SEC trata individualmente, e os suspeitos já foram acusados. Lá, assim que eles têm esboço da acusação, notificam o potencial acusado, e permitem que ele apresente proposta de termo de compromisso. Aqui, também é possível fazer acordo em qualquer fase do processo. Alguns acusados têm proposto, mas é um recurso pouco conhecido. De 2001 para cá, houve mudança de entendimento grande na própria CVM sobre os acordos. Na gestão do Marcelo (Trindade, antecessor), foi criado um Comitê de Termo de Compromisso, que faz com que a proposta de acordo seja analisada por superintendentes. Propusemos ao Ministério da Fazenda a criação de uma superintendência para conduzir os processos sancionadores. Nos EUA, a acusação da SEC vai junto com a da Justiça. Aqui, a punição administrativa corre na CVM, mas a ação penal só o Ministério Público ajuíza.

Quanto tempo leva hoje um processo na CVM?

MARIA HELENA: O acusado tem 30 dias úteis para apresentar a defesa, podendo pedir prorrogação e, nesse ínterim, pode apresentar proposta de termo de compromisso ou deixar ir a julgamento. Depois que a defesa é apresentada, o processo é sorteado para diretor no colegiado, que leva de um a dois meses para marcar o julgamento. Em poucos meses, devemos concluir o caso (da Sadia), os diretores devem dar prioridade. Dois anos entre o fato e a decisão é um tempo razoável, se compararmos com países desenvolvidos. Os mercados anglo-saxões, mais desenvolvidos, têm uma tradição de punição rápida, que desincentiva o crime e incentiva quem estiver sob suspeita a propor acordo. Estima-se que 95% dos casos na SEC são encerrados por acordo, em que o acusado oferece valor para a SEC ou indeniza os prejudicados.

O que fez o filtro da CVM pegar os dois casos que resultaram em bloqueio dos recursos na venda de ações da Suzano Petroquímica? O investidor pessoa física suspeito diz que o volume que ele operou (cem mil ações) era pequeno em relação ao total do dia (7,568 milhões de ações).

MARIA HELENA: O padrão de negociação dava indícios muito fortes de que não era ao acaso, de que poderia haver mais do que sorte e pontaria. As outras pessoas que venderam naquele dia não tinham comprado nas mesmas circunstâncias, tinham outro comportamento que dava um pouco mais de dúvida à CVM. E outras ainda não venderam. O bloqueio é uma medida dura, que precisa ser usada com coragem e segurança pela CVM.

Por que a CVM resolveu regular a atividade de jornalistas que cobrem mercado financeiro, com a alteração da instrução número 388, que rege a profissão do analista de investimentos? Vocês já foram procurados pelas entidades de classe dos jornalistas?

MARIA HELENA: Ainda não fomos procurados, estamos à disposição para conversar. Não queremos regular a atividade de jornalistas que cubram mercado financeiro, mas, no âmbito da atividade de analista, de recomendação específica de determinados ativos. Com o mercado crescendo, podemos imaginar que vão surgir publicações e colunas que se especializem nesse tipo de atividade. A gente propôs um marco que diz que quem fizer recomendação de investimentos não precisa se registrar na CVM, desde que tenha um código de conduta, que vise a preservar quem vai receber a análise. Temos na nossa regulamentação a exigência de que o analista diga se a instituição a que ele está vinculado tem ações, ou mesmo ele ou sua família. Esse tipo de divulgação sobre o potencial conflito de interesse faz toda a diferença para quem recebe a análise.

Já não há, hoje, mecanismos suficientes na lei?

MARIA HELENA: Estamos falando de coisas específicas, de um tipo de prestação que encontra fronteira com uma atividade regulada, como se fosse uma coluna de saúde ou uma que ensine a calcular laje. A gente precisa encontrar a medida, não queremos infringir a Constituição.

Seria algo como alguns jornais americanos já fazem, informando no pé do texto a relação de todos os citados, inclusive o jornalista e a empresa na qual trabalha, com a companhia analisada na reportagem?

MARIA HELENA: Sim, mas isso depende de auto-regulação. Chamar para o problema é um avanço. Todo mundo que atua legitimamente na área vai também se preocupar com o aspecto de conflito de interesses.

Quais os próximos desafios que a senhora vê à frente da CVM, neste momento em que o mercado está crescendo e tem mais de 270 mil pessoas físicas na Bolsa?

MARIA HELENA: Estamos atuando na alteração da instrução 202, que trata das informações que a companhia tem que apresentar ao mercado quando pede o registro ou continua como empresa aberta. A partir daí, vamos propor a criação dos níveis de registros com exigências diferenciadas. Por exemplo, uma empresa que só vai emitir papéis de dívida pode ter um registro mais simples do que a que vai negociar ações.

Há projetos de ampliação do corpo técnico da CVM?

MARIA HELENA: Vamos ter uma geração de técnicos da fundação da CVM (em 1976), que vão se aposentar nos próximos cinco ou dez anos, e precisamos preparar a instituição para sobreviver à saída deles. Vamos ter que fazer concurso. Hoje, temos cerca de 450 pessoas, metade disso de olho no mercado financeiro.