Título: A língua afiada de Maria da Conceição Tavares
Autor: Melo, Liana
Fonte: O Globo, 26/08/2007, Economia, p. 40

Musa da esquerda, economista faz estudo sobre BNDES, onde dará palestra na terça, e, entre amigos, critica BC e juros.

Exagerada, sim ela é mesmo exagerada. Fala com as mãos, com os olhos, com o corpo inteiro. As frases são pontuadas com palavrões. De temperamento vulcânico, a economista Maria da Conceição Tavares andava sumida. Recolhida no seu apartamento no Cosme Velho, só os mais próximos ouviam suas idéias, nem sempre cordiais.

Na próxima terça-feira, o público poderá ouvi-la. É que a professora dará a aula inaugural do próximo curso do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, na sede do BNDES. Quem pensava que Conceição, aos 77 anos, tinha se tornado apenas a avó dedicada aos netos Leon e Ivan, filhos de Bruno e Laura, respectivamente, enganou-se: ela continua com a corda toda e com a língua afiada.

Conceição está concluindo estudo sobre as origens do BNDES ao lado de Luiz Gonzaga Belluzzo. Os dois dividiam a presidência do centro até pouco tempo, só que ela abriu mão do cargo. Em parte, porque a saúde anda fragilizada e porque as tarefas burocráticas vinham ocupando demais sua agenda. Com o tempo livre, ela vai se dedicar a passar sua vida a limpo, ajudando um ex-aluno, o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), a escrever sua biografia.

Enquanto o livro não sai do prelo, as críticas de Conceição à política econômica vão continuar sendo feitas entre quatro paredes. Para ela, roupa suja se lava em casa, por isso fechou-se em copas e deixou de criticar o PT publicamente. Ela virou petista desde que saiu do PMDB, onde esteve de 1978 a 1988, e chegou a eleger-se deputada federal pelo PT, em 1994.

Biografia vai contar divergências e vida amorosa

Os mais próximos, porém, sabem exatamente o que Conceição anda pensando do governo Lula: 1) ela tem restrições à política monetária; 2) considera a postura do Banco Central conservadora; e 3) acha que os juros estão caindo muito devagar.

- Ela disse que vai contar tudo, da militância política às divergências econômicas, passando pela vida amorosa - garante Mercadante, que convive com a ex-professora desde os tempos da Unicamp.

Sua lista de ex-alunos é extensa: Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda), Carlos Langoni (ex-presidente do BC), João Manuel Cardoso de Mello, Belluzzo, Luciano Coutinho (presidente do BNDES)... Carinhosamente, costuma chamá-los de "meus meninos". Sua vida acadêmica se dividiu entre Unicamp e UFRJ.

- Sou eternamente grato a Conceição. Ela foi uma das minhas melhores professoras - elogia Langoni, hoje diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Doutor em Economia pela Escola de Chicago, onde o pensamento predominante é aquele que defende o livre mercado, Langoni sempre esteve do lado oposto ao de Conceição. Ele garante, no entanto, que a economista nunca foi sectária, apesar de adepta das idéias da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal, celeiro de teses que pregam o desenvolvimento econômico apoiado na industrialização voltada para o mercado interno).

Polemista por excelência, irônica e teatral - do tipo que arranca aplausos e gargalhadas da platéia -, Conceição coleciona histórias que incluem personagens notórios. Na ditadura militar, foi presa no aeroporto quando tentava embarcar para o Chile. Encapuzada, só não foi torturada porque Mário Henrique Simonsen, então ministro da Fazenda do general Geisel, saiu em socorro da amiga.

"Ele não fez mais que a obrigação. Afinal, foi menino do Santo Inácio, colégio da elite carioca", lembrou certa vez a professora, em entrevista publicada após a ditadura. Sobre o episódio, Simonsen, morto em 1997, respondeu: "Conceição nunca foi comunista, porque é preciso ter uma disciplina férrea para isso. O que ela se recusa a ser, pois não é capaz de obedecer a quem quer que seja. Ela é incapaz de fazer mal a uma mosca. O máximo que pode fazer é deixar o sujeito tonto de tanto falar. Ela não é ditatorial nos métodos, apenas nos decibéis".

Ulysses ficava tonto com a defesa de idéias de Conceição

Apesar da militância em campos opostos, Conceição foi amiga de Simonsen, além de Octávio Gouvêa de Bulhões (ministro da Fazenda em 64 e 67), de quem foi aluna exemplar e com quem aprendeu o rigor do ensino econômico, e Roberto Campos (ministro do Planejamento em 64), para quem, tempos depois, apontou o dedo e chamou de "lagartixa", numa discussão sobre a privatização da Petrobras.

O tom enfurecido com que sempre defendeu suas idéias deixava Ulysses Guimarães tonto, segundo o ex-senador Saturnino Braga. Belluzzo garante que, na verdade, o que o assustava era o fato de ela falar compulsivamente. Ele lembra que, antes das reuniões, Ulysses pedia sempre a alguém para tomar conta dela, a fim de conter um pouco sua verve.

- É que Conceição é uma pessoa transparente, em toda sua dimensão. Ela é passional e racional ao mesmo tempo - comenta Carlos Lessa, que contou com seu apoio para presidir o BNDES no início do governo Lula.

Só que, por trás dessa personalidade complexa, esconde-se uma mulher que sempre esteve à frente do seu tempo. Portuguesa de nascimento e brasileira desde 1957, quando naturalizou-se, Conceição nunca seguiu o modelo de mulher submissa: ela colecionou namorados e dois ex-maridos. Com a emoção sempre à flor da pele, a economista caiu no choro em rede nacional de televisão, ao defender o Cruzado, nos anos 80. Por trás do plano, estavam nada menos do que alguns dos seus "meninos".

Quem consegue romper a cortina de fumaça levantada pelos inúmeros cigarros fumados diariamente, surpreende-se ao descobrir em Conceição uma mulher como outra qualquer: vaidosa, sedutora e passional.

- Ela adora dançar. Só que esquece que é o homem quem conduz na dança de salão - conta rindo o ex-aluno Ernani Torres Filho, superintendente da Secretaria de Assuntos Econômicos do BNDES.

As dores na coluna não têm deixado Conceição sair para dançar com a freqüência com que gostaria. Festeira como ela só, a professora costumava soltar a voz entre os amigos.

- Ela canta fado muito bem - elogia Belluzzo.

Elogios à parte, Conceição não é uma unanimidade, nem entre a esquerda.

- Ela é a quintessência do homem cordial na academia - cutuca o professor de Economia da UFRJ Reinaldo Gonçalves.

Esse "homem cordial", como definiu o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, não é uma pessoa gentil, mas sim que se move pela emoção no lugar da razão. O conceito, definido em "Raízes do Brasil", é, para Gonçalves, a melhor tradução dessa portuguesa que adotou o Brasil como seu verdadeiro lar.