Título: O processo
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 29/08/2007, O Globo, p. 2

Há lições, sentidos e conclusões múltiplos a tirar do julgamento sem precedentes do STF, terminado ontem com a abertura de processo criminal contra os 40 denunciados pelo procurador-geral, Antonio Fernando, com destaque para José Dirceu e a antiga cúpula do PT, acusados de corrupção ativa e formação de quadrilha. Foi uma passagem importante para a afirmação do STF, um teste em que independência dos poderes passou com louvor. Mas a democracia só sairá ganhando de verdade se esse processo trouxer, além de condenações, mudanças nos ritos, controles e financiamento do fazer político no Brasil.

Seguindo o método do relator Joaquim Barbosa, tentemos separar alguns dos muitos aspectos que se somam para fazer desse julgamento um momento singular, talvez demarcador de uma nova fase política, em que os agentes públicos não se fiarão tanto no privilégio e numa Justiça complacente com os delitos da elite. Ainda que possa surgir, em decorrência, certa judicialização da luta política.

A VIRTUDE - Em todo o processo, é preciso valorizar a conduta republicana de alguns atores: quatro dos 11 ministros do STF foram nomeados pelo atual presidente da República, e nem por isso houve sombra de indulgência. O procurador-geral, autor de denúncia tão demolidora, foi nomeado pelo presidente, que por sua vez lhe concedeu um segundo mandato mesmo depois de apresentada a denúncia.

OS GANHADORES - A Câmara ontem silenciou, talvez por saber que algumas das práticas condenadas não são exclusividade dos novos réus, embora eles tenham transgredido em grau nunca antes visto ou ousado. No Senado, a oposição festejou, espera-se que pelas razões mais nobres, não apenas por ver o adversário nocauteado. Ganharam todos os adversários do PT, e eles de fato vislumbraram, ainda antes de Roberto Jefferson jogar a bomba, que algo havia de errado no financiamento do partido e na relação com os aliados. Festejaram também a atuação que tiveram na CPI e lamentaram por terem tentado o impeachment de Lula. Só não ganhou Jefferson, que agora também é réu.

A DERROTA DO PT - A aceitação da denúncia não é o julgamento final, mas a condenação política o PT já sofreu, na pessoa dos processados. Deprimidos, os petistas se dividiam ontem entre os que não pretendem reabrir essa ferida no congresso do final de semana, e os que acham necessário lancetá-la de vez. Dizia a deputada Maria do Rosário (RS): "Isso é doloroso demais, não pode ser usado como arma da luta interna. Mas temos que discutir e admitir os erros com franqueza, para que não sejam superlativizados. Continuo achando que crime eleitoral e corrupção ativa são coisas distintas". Mercadante também foi cuidadoso: "Não quero discutir decisões da Suprema Corte de nosso país, mas é inconcebível que deputados do PT tenham se vendido para votar com o PT, sendo agora processados por corrupção passiva".

DESCONFORTO DO GOVERNO - Lula fez silêncio, o Planalto também. Tudo indica que ali não se esperava o indiciamento dos petistas por formação de quadrilha. A indiferença que Lula tentou mostrar era falsa. E como ele sempre disse que "se alguém errou, vai ter que pagar", agora precisa ter um mínimo de coerência. Houve a oportunidade de defesa prévia, haverá a defesa nos autos.

JUSTIÇA MIDIÁTICA - Ao encerrar os trabalhos ontem, a ministra Ellen Gracie disse não acreditar que a suprema corte de algum outro país tenha se reunido, em sessão plenária, por tanto tempo, para examinar um processo com tantos envolvidos e tantos detalhes. Deve ter razão. Mas é também pouco provável que alguma outra corte máxima tenha conduzido um processo de forma tão transparente, nos tempos da comunicação instantânea, com os olhos da nação postos nos juízes. Se a tecnologia facilita positivamente a transparência da Justiça, muito ainda se discutirá sobre a preocupação dos juízes com a opinião pública, fazendo valer a presunção da culpa (expressão muito ouvida ontem na base governista) e e não a da inocência. Mas é no processo que elas terão de ser robustas. O STF achou os indícios e provas suficientes para aceitar a denúncia.

O FUTURO - Na raiz desse caso mensalão estão dois problemas de nosso sistema político: o financiamento das campanhas e a formação das maiorias num sistema multipartidário. O deputado Henrique Fontana, desvelado articulador da reforma política, dizia ontem que todos os partidos devem aprender com o episódio e fazer um final pela reforma política. Na semana que vem pode ser votado um projeto isolado sobre financiamento de campanhas, possivelmente misto, como nos EUA, mas com teto de gastos. Isso ajuda. A outra questão, a formação da maioria, gerou problemas (não tão agudos) em todos os governos civis pós-ditadura. Fernando Henrique entregava ministérios aos partidos e eles lhe entregavam votos. Isso funcionava no atacado. Dirceu, depois que Lula vetou a coalizão com o PMDB, partiu para acordos com os partidos médios. Segundo Jefferson, pagando mesadas pelo voto. Segundo muita gente da base, prometendo ajudas eleitorais para 2004, que, cobradas na hora do voto, foram sendo pagas por Delúbio-Valério pelos esquemas ilegais e criminosos demonstrados. Isso não faz muita diferença política, embora o nome mensalão seja mais insultuoso e funcional. Se a tragédia do PT não servir para mudar nada na cultura, nos ritos e regras da política, tudo isso terá sido um round da luta política, vencido pelos que pegaram o adversário em falta grave.

A ESQUERDA NO PODER - Em todo o mundo, partidos de esquerda que chegam ao poder têm caído em desvãos de alguma natureza. É o sistema devorando aquilo que antes se apresentava como seu contrário, como dizia ontem o professor, ex-petista e crítico do PT Chico Oliveira.