Título: Direito à verdade
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 30/08/2007, O Globo, p. 2

O Estado brasileiro reconheceu mais uma vez, ontem, os crimes cometidos em seu nome durante a ditadura. Este é o significado do livro-relatório apresentado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que, desde sua criação, pelo governo Fernando Henrique (1995), dedica-se a inventariar mortes, desaparecimentos, torturas e perseguições ocorridas no período. O livro "Direito à memória e à verdade" traz números provisoriamente oficiais, pois este desvão é escuro e fundo. Só com a abertura dos arquivos, que o presidente Lula ontem considerou possível, virá a luz definitiva, e a História estará fechada.

Fernando Henrique, em oito anos, e Lula, no primeiro quadriênio, não conseguiram vencer esse tabu, essa barreira interposta à verdade plena por segmentos militares que temem, desnecessariamente, alguma forma de revanchismo. Ou apenas para preservar biografias de quem, em vida, não se importou com isso. A ministra Dilma Rousseff coordena discretamente um grupo de trabalho encarregado de localizar e reunir arquivos e notas dos porões. Ontem, depois do encontro que teve, antes da solenidade, com emocionados familiares de desaparecidos que ainda hoje tentam localizar e enterrar seus mortos, Lula chegou bem perto de prometer a abertura dos arquivos: "O Brasil e, sobretudo, a história do Brasil precisam dessa verdade. Acho que conseguiremos desvendá-la e mostrá-la ao povo". Se já não há razões para temer o revanchismo, cabe ao chefe de Estado (e comandante-em-chefe das Forças Armadas) fazer valer o direito coletivo à verdade e à História, como diz o livro. O ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, lembrou que hoje os técnicos da secretaria voam nas asas da FAB para combater violações aos direitos humanos em "diferentes pontos do país. Um sinal de que as Forças Armadas participam desta política, mudaram, e compreendem o livro como necessidade de fechar o ciclo. O ministro da Defesa também assegurou que os militares vêem com naturalidade a busca pelos arquivos. Os comandantes militares não compareceram, entretanto. Mas é chegado o tempo. Jobim, que foi ministro da Justiça de FH, não era o único elo entre os dois governos na solenidade de ontem. Separados pela acirrada luta política dos últimos anos, só nestes momentos, evocadores da luta democrática em que combateram juntos, tucanos e petistas conseguem se reunir com alguma sintonia. Representando o governo FH, que deu início às reparações e ampliou os limites da anistia, lá estavam, convidados pelo Planalto, os ex-ministro da Justiça Aloisio Nunes Ferreira e José Gregori, tendo este sido antes secretário nacional de Direitos Humanos, além do ex-presidente da comissão naquele período, Luiz Francisco Carvalho Silva. Lidando, nestes 11 anos, com as dificuldades inerentes a um trabalho tão espinhoso, a comissão encerrou, em 2006, uma prolongada e exaustiva fase de levantamento. Ao longo dela, foram analisados, investigados e julgados 339 casos de mortos e desaparecidos. Somados aos outros 136 nomes reconhecidos no anexo da Lei 9.l40-que, ao criar acomissão e prever as reparações, reconheceu pela primeira vez as culpas do Estado -, são 475 casos. Sem enterrar seus mortos, sem saber onde ficaram seus corpos, são 135 famílias, boa parte de mortos no Araguaia. É tempo de virarmos a página, e há notícias de que estaria havendo agora mais disposição dos militares para colaborar, acionando os que detêm as chaves e arquivos do porão.