Título: Ricos gastam dez vezes mais que os pobres
Autor: Lins, Letícia e Almeida, Cássia
Fonte: O Globo, 30/08/2007, Economia, p. 27

RETRATOS DO BRASIL/POF: Nas famílias de domésticas, consumo é de só R$832. Entre empregadores, chega a R$4.290

Despesas dos 10% no topo da pirâmide chegam a R$1.814 mensais, contra R$179 dos 40% na base

RIO e RECIFE. Em qualquer recorte que se faça, a desigualdade de renda no Brasil assusta. Os novos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgados ontem pelo IBGE, mostram de várias formas essa distância de renda. Nas contas das despesas, a fatia dos 10% das famílias brasileiras mais abastadas chega a gastar dez vezes mais por mês do que os 40% mais pobres. Enquanto em 2003, data da pesquisa, cada pessoa das famílias mais ricas gastava R$1.814,61, a despesa nas casas onde a renda é menor se limitava a R$179,44. Na calculadora, a diferença: os ricos gastam dez vezes mais que os pobres.

Em outro cruzamento, a distância aparece com força. O trabalhador doméstico tem uma despesa média familiar de R$832,18, quantia 80,6% inferior aos gastos do empregador, o que tem a maior despesa familiar: R$4.290,75.

"Procuro trabalhar perto de casa para não pegar ônibus"

Essa realidade mostrada pelas estatísticas aparece no dia-a-dia de Angélica Karina de Lima, que estudou até a 5ª série e está há oito meses no seu primeiro emprego. Ela trabalha como doméstica, com carteira assinada, em uma residência de classe média do bairro de Apipucos, em Recife, ganhando salário mínimo. Solteira, tem dois filhos e afirma que quase todo o salário vai para a mesa da família:

- Gasto tudo com comida. Não sobra quase nada, nem mesmo para transporte. Como é tudo muito caro, procuro sempre trabalhar perto de casa, para não precisar ir de ônibus. Coletivo mesmo só nos fins de semana, quando a tarifa custa a metade.

Angélica gasta R$8 com a educação dos filhos: um estuda em escola comunitária, cuja mensalidade é simbólica, e o outro é criado pela madrinha, para reduzir as despesas domésticas. Ela não tem marido, e a mãe, que nasceu na Paraíba, é analfabeta.

Na outra ponta da pirâmide, está Francisco das Chagas Melo da Silva, pernambucano de Abreu e Lima. Ele é dono de duas lojas de peças para carros. Com quatro filhos, tem um perfil de despesa bem diferente. Só para a educação de dois filhos (os outros já estão formados) destina 30% de sua renda.

Enquanto a doméstica Angélica dedica praticamente tudo o que ganha para a alimentação, Silva gasta entre 20% e 25% com alimentos e 15% com transporte. Ele reclama, porém, que vive para pagar impostos: só na próxima sexta-feira terá de quitar mais de R$5 mil em tributos. Pelos dados da pesquisa do IBGE, o empregador gasta 17 vezes mais com impostos do que o trabalhador doméstico.

- No Brasil, tem muita desigualdade de renda. Os mais pobres pagam muito imposto, e o dinheiro do país só vai para meia dúzia de pessoas, inclusive os políticos, a julgar pelo que a gente vê nos jornais - afirma Silva.

As diferenças maiores estão nas despesas citadas por Angélica e Silva. A POF mostra que os empregadores gastam 10,8 vezes mais com transporte do que os empregados domésticos. Para a professora da UFF Hildete Pereira de Melo, esses números reforçam que a questão mais importante na realidade brasileira é a desigualdade:

- Temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Essa diferença, que aparece muito fortemente no transporte, indica também as viagens de lazer. Fizemos pesquisa na Baixada e descobrimos que muita gente não conhecia a Zona Sul do Rio.

"O dinheiro mal cobre as despesas da casa"

A disparidade também é profunda entre os trabalhadores agrícolas e não-agrícolas: o primeiro gasta a metade do segundo. Trabalhador rural desde os 7 anos, quando foi cortar cana acompanhando os pais, o pernambucano Armando Pedro da Silva roça mato, corta cana, cava sulcos no solo e semeia. O trabalho lhe rende menos que um salário mínimo por mês: cerca de R$300. Ele afirma que, quando recebe o dinheiro, separa logo R$50 para os remédios da família - principalmente dele e da mulher - e 90% do que sobra vai para a alimentação, sendo o fubá o principal ingrediente do cardápio.

- Trabalho por diária, ganho muito pouco. O dinheiro mal cobre as despesas da casa. Acho que vivo só prá trabalhar e trabalho só prá comer. Não dá prá economizar nada não - diz Silva, que mora com seus seis filhos num casebre próprio no município de Igarassu, a 30 quilômetros de Recife.