Título: Merecida agonia
Autor: Oliveira, Rosiska Darcy de
Fonte: O Globo, 31/08/2007, Opinião, p. 7

Um dos paradoxos do mundo globalizado é que, quanto mais os Estados nacionais perdem poder, mais as cidades se tornam protagonistas com vida própria e intensa.

Seattle e São Francisco adotaram políticas de meio ambiente inspiradas no Protocolo de Kyoto, desafiando as posturas retrógradas do governo Bush. Milão inaugurou uma reestruturação do tempo urbano que está fazendo escola no resto da Itália. Bogotá criou o "Bogotá como vamos", movimento de controle da administração pública ao qual se atribui a queda expressiva da criminalidade na cidade.

Nas cidades, há um mais perto da vida real, maior capacidade de influenciar nas decisões que afetam a vida das pessoas. A agorafobia política que a globalização gera, o sentimento de impotência e susto face ao descontrole dos fatos, cura-se pelo investimento em um território, em um espaço onde a realidade ainda é manejável.

A vida de uma cidade é de mais fácil acompanhamento do que a de um país. Já seria um enorme progresso se pudéssemos monitorar as políticas que regem a vida no Rio, influir em sua concepção e desenvolvimento, cobrar resultados. Redefinir a cidadania.

Os brasileiros acreditam no poder encantatório das palavras. À força de pronunciá-las, é como se elas ganhassem consistência. Cidadania é uma dessas palavras mágicas, incontornável em qualquer texto bem pensante sobre democracia, politicamente corretíssima. No entanto, a olho nu, é perceptível quão anêmica é a cidadania dos brasileiros. Basta observar a relação perversa entre a população e os governantes.

Nós e eles - é assim que nós, a população, nos referimos a eles, os governantes -, uma relação de estranheza marcada, em geral, pela distância e pelo sentimento de desamparo. Eles fazem ou deixam de fazer e nós assistimos, compungidos ou indignados, freqüentemente inertes. Esse desencontro é legitimado pela delegação de poderes que o voto outorga. Independentemente de quem governa, críticas são percebidas como instrumentos da oposição.

O anacronismo brasileiro faz com que se aplauda ou se critique um governo a priori, pela identidade que se tem ou não com ele. Esse primitivismo se traduz na detestável expressão "não colocar azeitona na empada de fulano", quando se recusa o aplauso merecido, o que é o contrário mesmo do espírito público, que seria avaliar corretamente os governantes pelo seu desempenho. A muito poucos ocorre que cidadania é manter sob vigilância os governos, qualquer que seja a concordância ou discordância que se tenha com eles. É ser, de certa forma, partícipe das políticas públicas, acompanhando seus rumos e ritmos, progressos e impasses.

Uma nova cultura política visa à qualidade de vida da população e, através de indicadores confiáveis, sabe se ela melhora. Desmente a demagogia, visão deformante que cria ficções e impede a construção de estratégias consistentes. Confronta políticos aos compromissos que assumem em campanha, verifica o cumprimento das promessas fáceis que fazem, inaugura uma prática permanente de cobrança de eficácia.

Quem sabe como está sendo avaliada a escola em que estudam nossos filhos? Que espécie de educação estão recebendo?A violência aumenta ou diminui, onde e por quê? Há que aumentar o nível de informação da população sobre o andamento da saúde, dos transportes, da segurança, da moradia e de outros aspectos constitutivos do seu cotidiano. O desafio é que qualquer pessoa possa se apropriar de dados confiáveis sobre qualidade de vida que a respalde no diálogo crítico com a administração pública. Dados, de difícil leitura e entendimento, mas que falam alto sobre a vida da população, estiveram quase sempre restritos ao uso de especialistas. Esse é um desafio conjunto para cientistas sociais, a mídia e os comunicadores: a produção de uma informação honesta e clara, que forme e estimule uma opinião pública consciente de sua capacidade de pressão junto ao poder público.

Um território, nossa cidade, o chão que pisamos cada dia. Um instrumento, o conhecimento de indicadores, traduzidos e tornados inteligíveis para o conjunto da população.Uma cultura política, a cidadania como um agir permanente, a compreensão do que afeta nossas vidas, a decisão de interagir com a administração, cobrar resultados, opinar e fazer escolhas com conhecimento de causa. Assim se estimula a imaginação social que faz viver as cidades.

Há quem diga que a política está morrendo, vítima dos desmandos de políticos desmoralizados. Inspira desprezo e desinteresse. Merecida agonia. Mas o que morre não é a política, é a demagogia. Enquanto ela se perde em seus próprios desmandos, aumenta na população a exigência de credibilidade, de eficiência, de resultados sensíveis em qualidade de vida. Não basta querer o bem da cidade, o que é por demais abstrato. Trata-se de querer o melhor, o cada vez melhor, o que pode ser medido, a cada mês, a cada ano. E esse querer é uma política.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é presidente do Centro de Liderança da Mulher. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br.