Título: Um mundo de recalls
Autor: Brafman, Luciana e Ribeiro, Fabiana
Fonte: O Globo, 02/09/2007, Economia, p. 33

Número passa de 120 milhões de unidades no ano.

Na contramão do caminho usado pelas empresas para despejar seus lançamentos no mercado, mais de 120 milhões de unidades de produtos foram condenadas a voltar para as mãos de seus fabricantes, desde o início do ano, numa onda mundial de recalls jamais vista em termos de quantidade e variedade - de automóveis a brinquedos, passando por eletroeletrônicos, alimentos (cenoura e sanduíche) e até botas e preservativos. No centro dessa tendência, dizem os especialistas, estão a globalização e a China, onde companhias produzem a custos menores, sem um controle de qualidade à altura da credibilidade das marcas. O resultado são lotes e lotes de produtos defeituosos, que, muitas vezes, põem em risco a vida do consumidor.

Nos Estados Unidos, principal destino das mercadorias chinesas, o número de recalls em 2007 vai superar em muito o de 2006, que já foi o pior ano da década, segundo estimativas da U.S. Consumer Product Safety Commission (CPSC), uma das seis agências governamentais responsáveis pelo tema no país. Apenas em agosto, a CPSC emitiu 36 comunicados e recolheu 12.164.100 produtos.

- Está havendo a banalização dos recalls, cada vez mais numerosos e diversificados - diz o professor de Varejo da Fundação Getulio Vargas (FGV) Cláudio Goldberg.

As mais de 120 milhões de unidades "desclassificadas" este ano expressam a banalização. Nessa conta, foram considerados cerca de 20 recalls, entre os de maior destaque na mídia. São, por exemplo, 30 milhões de Toddynhos, 450 mil pneus da China, 3,6 milhões de carros Ford, 46 milhões de baterias Nokia, 20 milhões de brinquedos da Mattel e 20 milhões de preservativos distribuídos na África do Sul.

Segundo Goldberg, o fenômeno está relacionado ao processo de terceirização da produção, adotado pela indústria para cortar custos. Faltou, porém, a preocupação em investir em políticas de gestão e qualidade, que são caras. Marilena Lazzarini, coordenadora-executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e presidente da Consumers International, diz que, com a globalização, o recall ultrapassa barreiras.

- O recall está ligado à produção em massa, com sistemas de qualidade pouco eficientes. É a era do recall global - afirma Marilena, lembrando que o Brasil, já afetado por alguns dos grandes recalls, deve se preparar para a nova realidade, desenvolvendo um sistema com agências reguladoras mais atuantes e maior fiscalização.

A reação, nos EUA, parece já ter começado. Das 124 milhões de unidades que figuraram na lista do ano passado da CPSC, dois terços foram importados, 60% deles da China. A preocupação com a origem é tão grande que a agência tem agora um setor inteiro exclusivamente destinado à análise de produtos daquele país. Isso aumentou a onda de ações contra importados chineses e já surgem no mercado bens com o selo China free, garantindo que neles não há componentes do país asiático. Com certa sinofobia à solta, os americanos voltam a investir no made in USA.

O professor de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Cláudio Considera, que ocupou a Secretaria de Acompanhamento Econômico no governo Fernando Henrique Cardoso, ressalta que é preciso mesmo separar os recalls em dois grupos: os "normais" e os da China. Na primeira categoria estariam os produtos novos que chegam às lojas com algum tipo de defeito, dada a velocidade dos lançamentos, e são, na prática, testados pelo consumidor, que atua como "cobaia". A vantagem, explica, é ter acesso às novas tecnologias em primeira mão, com suporte e garantia dos fabricantes, e poder até sugerir ajustes. É o caso dos sistemas operacionais da Microsoft, como o Windows Vista, e suas atualizações pós-lançamento:

- Isso é menos problemático. O pior é a produção na China, feita sem gerenciamento, a começar pela compra de matérias-primas. A China é um país sem tradição capitalista, não conhece as regras básicas do sistema. Nos países comunistas, mal se tem acesso ao consumo, que dirá a controles de qualidade...

Considera lembra que são esses controles que dão segurança às relações de consumo. E destaca que o "descuido" capitalista gera danos além dos custos de ressarcimento.

- A imagem da empresa fica comprometida. Sua marca está em jogo. É como jogar fora o lucro futuro. Não me surpreenderei se a Mattel, por exemplo, mudar o nome de brinquedos.

Para a coordenadora geral da associação de defesa do consumidor Pro Teste, Maria Inês Dolci, há outro fator que contribui com o festival de recalls:

- O controle feito por profissionais especializados foi substituído por máquinas. Faz pensar que os produtos saem inacabados da fábrica.

Seja como for, no novo cenário que se configura, o consumidor é o grande perdedor. Para Goldberg, da FGV, o risco de um recall pode acabar assimilado nas decisões de compra, como uma espécie de custo embutido. Seria a contrapartida de adquirir um produto mais barato, fabricado, por exemplo, na China. Mas se o mercado começar a rejeitar empresas ou países com grande histórico de recalls, afirma, é possível que haja uma "desterceirização". Desta forma, embora ganhe em segurança, o consumidor acabaria também arcando com parte desse custo, pagando mais caro por produtos com maior qualidade.

(*) Correspondente

NO BRASIL, 30 "RECALLS",

na página 34