Título: A Marselhesa brasileira
Autor: Batista Jr., Paulo Nogueira
Fonte: O Globo, 08/09/2007, Opinião, p. 7

Imagino o leitor posto em sossego, em pleno fim de semana prolongado, tranqüilo, despreocupado. Não quero perturbá-lo com considerações sobre a conjuntura econômica ou política.

Ontem, foi o dia da independência e o hino nacional ressoou no país inteiro e também na Embaixada do Brasil, aqui em Washington. É sobre isso que eu queria escrever. Não sobre o hino nacional, mas sobre um outro hino nosso, extra-oficial e que bem poderia ser oficializado - e aí vai uma sugestão - como hino da democracia brasileira.

Refiro-me à canção de Geraldo Vandré "Pra não dizer que não falei de flores". Foi o canto de guerra dos que se insurgiram contra o regime militar em 1968 e nos anos seguintes. Era a trilha sonora da luta contra a ditadura, a nossa Marselhesa, como bem disse Nelson Rodrigues. Sua execução foi proibida durante anos. Mas, agora, passado tanto tempo, arrisco dizer que nem os militares, ou nem todos eles, não a maioria, se ofenderiam com a minha sugestão.

Fui reler a letra. Ela é de uma delicadeza tipicamente brasileira. A delicadeza começa no título, na referência irônica às flores, que reaparecem na letra algumas vezes como contraponto suave ao refrão:

Vem, vamos embora, que esperar não é saber Quem sabe faz a hora, Não espera acontecer.

As flores entram como uma espécie de segundo refrão, contraposto ao primeiro e, também, às armas:

Pelos campos há fome em grandes plantações Pelas ruas marchando indecisos cordões Ainda fazem da flor seu mais forte refrão E acreditam nas flores vencendo o canhão .

As flores simbolizam uma hesitação, uma crença provavelmente ilusória nas soluções pacíficas. Mas fica tudo um pouco no ar. As flores não são frontalmente rejeitadas, ainda que, no verso final, terminem "no chão", superadas por uma "nova lição". E elas dão o título à canção, embora com a ambivalência de uma dupla negativa.

O verso considerado mais ofensivo às forças armadas era o seguinte:

Há soldados armados, amados ou não Quase todos perdidos, de armas na mão Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição De morrer pela pátria e viver sem razão.

Hoje, isso parece tão puro, tão inofensivo. Tanto mais que, na seqüência, os adversários do regime também são chamados de "soldados":

Nas escolas, nas ruas, campos, construções Somos todos soldados, armados ou não Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais, braços dados ou não.

Enfim, uma bela canção. Como escreveu Nelson Rodrigues, enquanto outros imitavam os estudantes franceses, Vandré era de "uma fascinante originalidade. (...) Não há um verso que não seja dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas".

Mas Nelson queixava-se, sem nenhuma razão, que nem o Brasil, nem o brasileiro entravam na canção de Vandré. Ora, o Brasil e o brasileiro estão inteirinhos ali. Primeiro na música que, segundo o próprio Nelson, era embaladora, suavíssima, quase uma berceuse. "Nunca se viu uma Marselhesa tão pouco Marselhesa, tão anti-Marselhesa", dizia ele. Nelson quis ver uma incompatibilidade total entre letra e música. Mas a letra, repito, é de uma suave ambiguidade. Há flores de ponta a ponta, ainda que cobertas de ceticismo. E não corre sangue, nem há chamamento às armas.

Basta compará-la à "Marseillaise", o hino da França, que no seu refrão chama os cidadãos às armas, a "formar batalhões" e a marchar, marchar, fazendo "o sangue impuro" dos inimigos encharcar os campos da pátria.

"Pra não dizer que não falei de flores" é Brasil do começo ao fim. Por isso, ela bem que poderia ser declarada o "Hino da Democracia Brasileira".

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. é economista e diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional. E-mail: pnbjr@attglobal.net