Título: O Senado no espelho
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: O Globo, 12/09/2007, O Globo, p. 3

O Senado, que nasceu no Império, vive hoje seu primeiro e grande dilema interno na fase republicana, diferentemente da Câmara, que, ora altiva, ora covarde, já passou por testes difíceis. O Senado só uma vez na vida, já no ano 2000, cassou um dos seus e, mesmo assim, quando já se tratava de um zumbi. Hoje, decide se cassa seu presidente, Renan Calheiros, dividido entre o espírito de corpo e o espírito do tempo. A incerteza era grande, mas este último ganhou força ontem, favorecendo a cassação.

O processo, sua natureza, a demora e os expedientes usados para atrasar o julgamento criaram a situação que põe o próprio Senado em julgamento e pode comprometer a vantagem que Renan ainda ontem parecia ter, mas já muito escassa. Quando até um companheiro de partido, como o senador Garibaldi Alves (PMDB), anuncia que votará pela cassação, não para condenar Renan, mas para absolver o Senado, é sinal de que a preocupação institucional, sincera ou falsa, ganhou terreno, em busca de uma reconciliação com a opinião pública. Na reta final, cresceram os temores com os efeitos (políticos, mas também eleitorais) de uma absolvição.

Mas qualquer uma das duas decisões falará também de mesquinharias e hipocrisias dos senadores e da própria política brasileira. Ou mesmo com a terceira saída, que seria a renúncia de Renan à presidência, o que lhe renderia alguns votos para salvar o mandato e atenuaria a reação externa. Como disse o senador-relator Renato Casagrande, pode ser uma boa saída para Renan, mas, para o Senado, talvez seja a pior delas. Sugere, além da barganha, a existência de um decoro para ser presidente e outro para exercer o mandato. Decoro é um só.

E, apesar dos prognósticos que se mantinham ontem entre os renanzistas, de que haverá absolvição por pequena margem de votos, a cassação pode ocorrer por força de muitas traições a Renan, por parte dos que começaram a temer pela fragilidade de um Senado complacente com um presidente que se enredou tanto ao tentar refutar uma acusação sem provas, invertendo o ônus de apresentá-las.

Mas sabem que o caso de Renan os coloca diante do espelho, de frente para os pecados que (quase) todos cometem, e cassá-lo tornou-se um grande drama para os colegas. São pecados comuns as relações promíscuas com financiadores de campanha e a retribuição dos favores sob a forma de emendas, isto é, com dinheiro público. Renan, tentando provar que não precisava de ajuda de terceiros para bancar os elevados custos impostos por uma relação extraconjugal rompida com o nascimento de uma filha, argumentou ter rendas que não demonstrou inteiramente, levantou novas suspeitas sobre empréstimos e negócios obscuros, como a de ser proprietário oculto de emissoras de rádio. Aqui, de novo, as hipocrisias que incomodam alguns espíritos: no Brasil, não há político bem-sucedido que não tenha um ducado ou principado de mídia regional, sempre em nome de terceiros. Não é preciso dar nomes, isso é público. É claro que os pecados alheios não inocentam ninguém, mas apontam a hipocrisia. O fato é que, quanto mais tentou se explicar, mais Renan se complicou. E, no Conselho de Ética, a maioria endossou a tese dos relatores, de que ele mentiu ao se defender.

A representação que levou ao julgamento de hoje o acusa é de ter recebido dinheiro da empreiteira Mendes Júnior. A tortuosa investigação dessa suspeita também depõe contra todos os senadores. Pois, como bem lembrou ontem o jornalista Janio de Freitas, na "Folha de S.Paulo, ninguém, no Conselho de Ética, sequer cogitou investigar a suposta fonte de recursos, que, segundo a acusação, seria a empresa, não seu diretor Cláudio Gontijo. Sabemos, desde a CPI do Orçamento, que congressistas evitam incomodar empreiteiras. São todas amigas. E se um da fraternidade cai em desgraça, por descuido de qualquer natureza, que morra ele, sem levar a fonte.

Toda corrupção, no fundo, começa com o financiamento eleitoral. Com o mensalão, tivemos o financiamento de partidos aliados pelo partido governante. Mas bem antes já existia outra figura derivada, o financiador de carreiras. Quem, no meio político, nunca ouviu dizer que certo rico empresário "é o financiador de fulano?".

O que começou a acontecer nas últimas horas de ontem foi o velho movimento de preservação da espécie. O temor de que a absolvição possa expor o Senado ao apedrejamento moral, sobrando pedras para todos que estão lá dentro. O que não estava certo - e a noite prometia ser longa - era a suficiência deste movimento para neutralizar a vantagem dos aliados do senador.