Título: Foro privilegiado
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Fonte: Correio Braziliense, 29/03/2009, Opinião, p. 16

Quando os princípios de direito e justiça abrem exceção para favorecer mais a uns do que a todos os cidadãos, o regime de franquias democráticas se descaracteriza e toma o feitio de uma contrafação política. Entre algumas regras da Constituição que conduzem a democracia brasileira a semelhante patogenia institucional, figura em ponto relevante o instituto do foro por prerrogativa de função (foro privilegiado). É que viola com a força de visibilidade ostensiva o igualitarismo na distribuição das prerrogativas e deveres aos membros da coletividade nacional, dogma do constitucionalismo brasileiro.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade verbera contra a existência de instância especial, em particular o Supremo Tribunal Federal (STF), para processar e julgar, nos crimes comuns, certos agentes públicos. A lista dos que estão sujeitos ao escrutínio do STF está exposta no artigo 102, inciso I, letras b e c da Carta Política (os principais são o presidente e o vice-presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os próprios ministros da Corte, o procurador-geral da República, os ministros de Estado, os comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica e os membros dos tribunais superiores).

No curso dos últimos 20 anos, todas as tentativas destinadas a extinguir a regalia não foram além do fracasso. Principais interessados em conservá-la intocada, deputados e senadores só admitiram mudanças cosméticas. Nada que retirasse da alçada do STF o encargo de instaurar ação penal contra portadores de mandatos legislativos federais. Agora, proposta de emenda constitucional de iniciativa do deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ) elimina o foro privilegiado. Passa à competência dos juízes de primeira instância o julgamento de processos criminais contra qualquer das personalidades beneficiárias da exceção.

Prestes a desembarcar no plenário da Câmara, a proposição está exposta a ácidas restrições. A de maior recorrência ¿ e sem dúvida a mais hipócrita ¿ é a que levanta a lentidão da Justiça de primeira instância como obstáculo à tramitação das ações antes de serem alcançadas pela prescrição extintiva de punibilidade. Trata-se de argumentação pueril, para não dizer de má-fé. Basta atentar para o fato de que rareiam espaços no sistema penitenciário para a custódia de sentenciados pelas hierarquias primeiras do Poder Judiciário.

É o foro privilegiado que assegura a impunidade por via da prescrição. O STF não dispõe ¿ nem deveria dispor ¿ de serventias para cumprir em tempo hábil ritos e procedimentos da ação penal. Entre tantos, manifestar-se sobre a denúncia, citar o réu, despachar os atos de defesa preliminar, resolver os incidentes processuais, expedir cartas precatórias ou rogatórias, intimar advogados, convocar e promover a oitiva de testemunhas, requisitar à polícia judiciária, se for o caso, provas complementares. É indispensável libertar o Supremo para que cumpra à margem de grandes sacrifícios o dever de guardar o regime constitucional contra os que ousam afrontá-lo, como o faz até hoje. Foro privilegiado é ofício das manhas astuciosas da política para garantir a impunidade de seus agentes.